Luta em vão contra tolices

15 de outubro de 2019 às 0h01

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Crédito: Pixabay

Cesar Vanucci*

“Com a tolice os próprios deuses lutam em vão.” (Friedrich Schiller, filósofo e historiador)

Integrante do reduzido, posto que leal, culto e assíduo leitorado destes mal datilografados escritos abastece-nos de informação que serve, alentadoramente, para enriquecer as considerações que, de quando em quando, trazemos a este acolhedor espaço com o propósito de reagir às agressões sofridas pela cultura brasileira.

Segundo ele, os restaurantes que mais faturam na praça, vale dizer, que mais fregueses atraem, são os de denominação – às vezes, tão saborosa quanto os pratos do cardápio – com som, jeito e cara de Brasil.

O leitor explica ainda que na avaliação pessoal procedida deixou de levar em conta, como estabelecimentos classificados na “lista estrangeiros”, as casas típicas cujos nomes fantasia se mostrem vinculados, por óbvios motivos, à natureza essencial do negócio. E tira animadora conclusão para quem se disponha a defender, com espírito cívico, o apreço na lida cotidiana ao idioma do país: o povo sabe assumir, instintivamente, a proteção dos valores culturais da nação.

Imaginamos seja mesmo assim que as coisas rolem nos redutos populares. E nos pomos a pensar quão proveitosa poderia vir a ser em revelações uma pesquisa aprofundada das preferências comunitárias, nessa linha de averiguações seguida no caso reportado dos restaurantes.

As desfigurações e o achincalhe linguísticos, bem como outras habituais modalidades de atentado cultural, têm origem no pauperismo intelectual subjacente a ambientes sofisticados onde a falsa erudição reina e onde muitos se entregam, embriagadoramente, ao jogo fantasioso de pertencer às chamadas “elites emergentes”.

Nesse território de pedantismo elevado ao cubo é de bom tom o emprego de estrangeirismos no papo trivial. Não se trata aí do uso pertinente de vocábulos ainda não traduzidos, indispensáveis ao entendimento de um processo tecnológico relevante. Nem de citações, perfeitamente compreensíveis, em idioma alheio, capazes de definirem com melhor precisão uma circunstância típica ligada a realidade cultural de outros lugares.

Nada disso. O que merece condenação é o emprego de estrangeirismos forçados, roçando o desrespeito. A expressão decorada fica engatilhada no canto da língua ou armazenada na gaveta da memória, aguardando hora e vez de ser lançada, com pernosticismo, em manifestações orais e escritas. Correspondências, convites, discursos, entrevistas, painéis de rua, folhetos e volantes contendo ofertas de ocasião: a situação é de puro surrealismo. Concorre para a poluição sonora e visual, sendo vivenciada na indigência cívica e intelectual de uns e outros.

Acode-nos à lembrança, neste preciso instante, um fato assaz divertido. Uma comerciante da praça recebeu carta de fornecedor salpicada, como é de praxe em certos ambientes, de frescurinhas vocabulares. Do impresso, bem cuidado do ponto de vista gráfico, cores harmoniosamente distribuídas, caracteres sugestivos, o escambau, constou proposta à destinatária para cooperar com o missivista no sentido de que, juntos, pudessem “alcançar nossa gestalt”.

A dama agraciada com a desconcertante proposta, pessoa temente a Deus, desafeiçoada à terminologia “alienígena” solta por aí, só se tranquilizou mesmo quando a filha, estudante de Psicologia, rindo a bandeiras despregadas, explicou o significado da desconcertante e desconhecida expressão. Foi quando, então, ficou sabendo que gestalt, palavra alemã, sem tradução no vernáculo, de conteúdo substancioso, identifica uma técnica utilizada em Psicologia para transmitir ideia aproximada de totalidade, abrangência, por aí.

A comerciante inteirou-se, também, que o termo trafega com crescente desembaraço pelos descaminhos das incontinências verbais. É adotado, com entusiasmo iconoclasta, para o uso impróprio costumeiro, pela turma que considera o máximo, em matéria de saber, a capacidade para introduzir de enfiada num diálogo de cinco minutos as palavras “book”, “inside”, “feeling”, “feedback” e outras do gênero.

Ou que considere uma suprema bem-aventurança receber em casa, com o nome grafado de próprio punho pelo anfitrião, um “emergente” qualquer, honroso convite para um “brunch” ou “happy hour”…

Carradas de razão assistia a Schiller, quando asseverava que “com a tolice os próprios deuses lutam em vão”. Ou ao poeta Coelho Neto, quando proclamava que “Civismo é (…) zelar pela pureza do idioma e dos costumes herdados.”

*Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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