A ONU e o ministro (1)

23 de agosto de 2018 às 0h01

Cesar Vanucci*

“Os fins não justificam os meios.” (Brocardo português)

O que vem sendo colocado agora, neste momento, à análise serena da sociedade, sobretudo dos interessados na aplicação correta da Justiça, portanto sem contrafações, é a necessidade do reexame atento de um entendimento jurídico ardorosamente questionado em qualificadas e insuspeitas instâncias. Decisão recente da Comissão de Direitos Humanos da ONU contesta a interpretação jurídica firmada em caso processual que envolve o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Adiciona argumento vigoroso e convincente a uma tese sustentada por alguns dos mais conceituados cultores brasileiros e estrangeiros do Direito Constitucional. A tese em causa põe em xeque a pertinência da execução de sentenças penais antes do preenchimento cabal dos requisitos do chamado “trânsito em julgado”.

Decisão, proposta, recomendação, sugestão, seja qual for a configuração aceita, o pronunciamento em tela carece ser encarado com seriedade. No verdadeiro conceito civilizatório é vedado a um país signatário da Carta da ONU tangenciar, ignorar, menoscabar questões relevantes, de irretorquível ressonância mundial, trazidas a debate no âmbito da instituição. Alguma eventual opção por procedimento contrário só costuma prosperar em função de impulsos nascidos de embriagante autossuficiência e arrogância imperial, ou como fruto de concepções autoritárias descompromissadas com os valores da confraternidade humana.

Não há como desconhecer, de outra parte, que o posicionamento do órgão internacional, pela similaridade dos conceitos doutrinários emitidos, acabou conferindo refulgente atualidade ao magistral voto do ministro Celso de Mello no STF, a propósito da mesmíssima matéria, na candente sessão dos 6 X 5. Aconselha-se, à vista disso, seja este voto relido e reavaliado, com prudência e objetividade, por tantos quantos demonstrem preocupação com as práticas jurídicas castiças, transparentes, elididas de pontos de vista prévios equivocados, ou impregnados de passionalidade política, ou de outra qualquer inspiração juridicamente conflitiva.

Despiciendo anotar que a louvável disposição comunitária, traduzida em ações institucionais dignas de aplausos pra se acabar com a nefasta impunidade na vida pública, não se amolda a favorecer decisões que alvejem valores jurídicos e democráticos essenciais. Dos julgadores de feitos processuais espera-se se mostrem capazes de imprimir celeridade aos assuntos de sua alçada, claro está. Mas essa almejável agilidade no ritmo processual, que tem sido deploravelmente menosprezada na tramitação de milhares de ações que percorrem as íngremes ladeiras forenses, não pode se aprestar à quebra de preceitos jurídicos consagrados.

Na ciência jurídica, bem como em qualquer outra modalidade de serviço fundamental ligado à trepidante aventura humana, os fins não justificam os meios.

Feitas estas considerações, abre-se ensancha oportunosa, como se dizia em tempos de antanho, para que se formule convite aos ilustres leitores a fazer-nos companhia na apreciação de valiosos trechos do lapidar voto do ministro Celso de Mello. A fala do decano do Supremo cuida de oferecer-nos esplêndida condensação de sabedoria jurídica, profusa em conteúdo humanístico e afirmação democrática. Ele começa por descrever com exatidão legítimas aspirações da sociedade no tocante ao saneador trabalho que se impõe promover na lida das atividades públicas no sentido de enobrecê-las.

Suas as palavras que se seguem: “Em um contexto de grave crise que afeta e compromete, de um lado, os próprios fundamentos ético-jurídicos que dão sustentação ao exercício legítimo do poder político e que expõe, de outro, o comportamento anômalo de protagonistas relevantes situados nos diversos escalões do aparelho de Estado, torna-se perceptível a justa, intensa e profunda indignação da sociedade civil perante esse quadro deplorável de desoladora e aviltante perversão da ética do poder e do direito!” (…) “A corrupção governamental e a avidez criminosa de empresários que a fomentam em benefício próprio culminam por capturar as instituições do Estado, tornando-as reféns de seus ilícitos e imorais propósitos, deformando e subvertendo o próprio sentido da ideia de República! Em situações tão graves assim, costumam insinuar-se pronunciamentos ou registrar-se movimentos que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas (e lesivas) à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir, qualquer que seja a modalidade que assuma: pretorianismo oligárquico, pretorianismo radical ou pretorianismo de massa.”

Reservamos para o comentário vindouro a reprodução dos conceitos com os quais o ministro explicita admiravelmente sua isenta e aplaudida interpretação do texto constitucional.

* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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