A recomendação do coronel

23 de abril de 2019 às 0h01

CESAR VANUCCI *

“Um preceito do direito (…): dar a cada um o que é seu” (Ulpiano – 228 d.c.)

Ocupando-nos recentemente da momentosa e polêmica questão da Previdência Social, manifestamos o ponto de vista de que a melhor fórmula, única em termos de justiça social de se promover reforma previdenciária nos devidos trinques, é a da fixação de benefícios básicos idênticos aos cidadãos, sem concessões ou vantagens especiais em função da atividade, condição social, política ou profissional.

Aos doutos em direitos sociais e previdenciários tocaria a complexa tarefa de formatar um modelo previdenciário oficial que se aprestasse a todas as categorias e que, com bom senso e simplicidade, conforme os ditames democráticos e republicanos, permitisse aplicação clara e objetiva do principio da igualdade de direitos para todos. Está claro que uma demanda dessa natureza imporia tempo mais dilargado para reflexões, estudos e avaliações.

Mas, com certeira convicção, no final das contas, o País seria agraciado, no futuro, como tanto se almeja, com um sistema previdenciário oficial sem déficits preocupantes, contudo igualitário nos fundamentos essenciais. Ou seja, sem permitir-se concessões de privilégios a quem quer que seja. Sem interpretações difusas e confusas que impliquem em vantagens especiais para parcelas minoritárias da sociedade, provenientes do jogo penumbroso das conveniências corporativas.

O palpitante debate relativo à chamada reforma da Previdência Social relembra-nos causo que envolve um coronel lá das bandas do sertão, dono de um bocado de léguas de terra boa pra cultivo e criação. Personagem à antiga, desses que apalavram compromisso com fio de barba, resolveu exercer, em determinada ocasião, conduta mais branda nos negócios habitualmente conduzidos com discricionária autossuficiência.

Dando-se conta das expectativas nervosas em falas reticentes e olhares interrogativos dos filhos legítimos e outros nem tanto, e também da zelosa matrona, reconhecida solenemente como “matriz”, conhecedora resignada de um punhado de “filiais”, decidiu, de hora pra outra, pelo “repartimento em vida dos haveres” do alentado e cobiçado patrimônio.

A cara metade, sempre cordata no papel de dona de casa confinada às prendas domésticas, num raro momento de insubmissão, resolveu meter o bedelho “nesse assunto de homem”, induzindo o marido a utilizar, no trabalho técnico anunciado, os reconhecidos talentos do neto mais velho, economista laureado em brilhante curso, com especialização no exterior.

O coronel deixou-se levar, como confessou mais tarde, pela conversa “na maciota” da patroa, acolhendo com um sentimento mesclado de orgulho, escondendo no intimo alguma insegurança, a sugestão de entregar a tarefa do “somatório e divisão dos bens” ao “apetrechado descendente de valorosa estirpe”. “Num deu outra. Uma deceptude total.

Por destraquejo do rapaz, inflado que nem bezerro gordo, bom de pasto, pelas ideias moderneiras dessa geração barbugenta, nasceu uma porqueira de documento, tudo nos desconformes, dando mais amolação que parimento de égua encruada”, comentou o coronel adiante com amigos chegados.

O jeito de “consertar o desarranjo” foi convocar às pressas, para “aconselhamentos e providenciamentos reservosos e sigilentos, a peso de ouro”, causídico renomado, com quem o coronel lastimou “o excesso de leprego” do neto:

“O garoto verteu mesmo fora do barranco, com baita engazopação, cheio de nove hora, explicação técnica para isso e pra aquilo, mode convencer, mas sem convencer um tiquinho.”

Ignorando, por certo, que em contexto diferente algo assemelhado já houvesse sido proferido por um certo escritor chamado George Orwell, o coronel arrematou fulminantemente:

“Na divisão – parece inté artimanha do maligno – o menino aprontou um fuzuê. Deu uma desembestada geral, desigualando o partilhamento, deixando os homens com cara de burro fugido e as mulheres com face de Madalena arrependida, a me afrontarem, prafrentemente, em defesa, com unhas e dentes, de nacos melhores do churrasco. Igualzinho esse descalabro da Previdência Social, adonde os benefícios da aposentadoria são dados de acordo com a cara do freguês. Num quero desses desajeitos previdenciários no meu negócio. A lei fala que todos são iguais perante a dita cuja. Num tem dessa, então, de alguns serem mais iguais do que os outros. Bota tento nisso, doutor. Faz arrumação justa.”

Conselho válido para os debates da hora sobre a reforma previdenciária: botar tento, para uma justa arrumação.

  • Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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