Black Mirror fiscal

4 de junho de 2019 às 0h01

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Crédito: Designed by Freepik

 Guilherme de Almeida Henriques * 

Se você se interessou pelo título deste artigo, provavelmente, é fã da antológica série britânica criada por Charlie Brooker, que trata das consequências imprevisíveis do avanço da tecnologia sobre a sociedade moderna e que, atualmente, é exibida pela Netflix.

E se você é fã de Black Mirror, deve se recordar de um episódio em especial, da terceira temporada, intitulado Noosedive (ou “Pulo de Ponta”, em tradução livre), que trata de uma realidade distópica, não muito diferente da nossa, em que os personagens são permanentemente avaliados em uma rede social

Neste episódio, as atitudes socialmente desejáveis por aqueles que compõem essa rede, como ser simpático com os vizinhos ou fazer caridade, são premiadas com likes, enquanto aquelas indesejáveis, como “armar barraco” e ficar inadimplente, são punidas com dislikes.

Na conta-corrente entre likes e dislikes, as pessoas com melhor classificação tem acesso vip às melhores festas, aos melhores hotéis e restaurantes e, até mesmo, a financiamentos habitacionais e locação de veículos mais baratos, o que torna a busca pela aprovação do outro uma obsessão.

Assim, não há como não se sentir dentro do espelho quando se lê a notícia de que “Receita vai dar tratamento ‘VIP’ para empresas que pagam impostos em dia”. De acordo com a Receita Federal, o programa “Pró-Conformidade” busca estimular os contribuintes a adotarem boas práticas com o fim de evitar desvios de conduta e de fazer cumprir a legislação.
Suas regras estão dispostas na Consulta Pública RFB nº 04/2018 e preveem classificar os contribuintes com notas que vão de A a C, assegurando àqueles que ganharem nota máxima vantagens como a prioridade no recebimento de restituições e preferência no atendimento pessoal. Já os contribuintes que receberem nota C terão fiscalização mais rigorosa.

Os critérios para a classificação são os seguintes: (i) situação cadastral compatível com as atividades da empresa; (ii) aderência nas informações prestadas à RFB por meio de declarações e escriturações; (iii) tempestividade na apresentação das declarações e das escriturações; e (iv) adimplência no pagamento dos tributos devidos (com ênfase nesse último).

Ora, pagar tributos nada tem a ver com boa-fé ou lealdade, como parece crer a Receita Federal. É uma obrigação legal e, em razão disso, deve obedecer aos limites impostos pela população, por meio de seus representantes no Legislativo. Afinal, “o poder de tributar envolve o poder de destruir”, como já alertava John Marshall, Chief of Justice da USSC em 1819.

O programa não faz distinção entre o contribuinte inadimplente e aquele que discute na Justiça uma cobrança que considera injusta (o que é recorrente em um País como o nosso, que possui uma das maiores e mais complexas cargas tributárias do mundo) e que se encontra garantida pela penhora de seus bens.

Ademais, excluídos os sonegadores (a esses, os rigores da lei, como preconiza a própria norma), ninguém fica inadimplente com o Fisco por vontade própria. Diferentemente das dívidas particulares, nas quais as multas aplicadas são, em geral, de 2% (dois por cento), as multas fiscais são de, no mínimo, 20% e, em geral, de 75%, podendo chegar a 150% em caso de reincidência.

Isso sem falar nas sanções indiretas que decorrem do não pagamento de tributos, como a negativação do nome do contribuinte, através de sua inscrição nos cadastros de inadimplência (em razão da qual não se consegue participar de licitações, financiamentos com instituições financeiras, transferir imóveis, etc.), processo judicial de execução e penhora on-line de seus bens.

Assim, são os contribuintes inadimplentes aqueles que mais precisam de prioridade no recebimento de suas restituições e do incentivo e assistência do Fisco para regularizar sua situação, e não o contrário. Fica claro, portanto, tratar-se de mais uma medida meramente arrecadatória.

Por outro lado, não se vê nenhuma medida concreta de aprimoramento no atendimento do contribuinte ou métricas para avaliação dos fiscais de acordo com sua conduta colaborativa em relação às normas de conformidade, mostrando, claramente, como a Receita se situa nessa relação.

Em suma, por mais que os programas de compliance fiscal venham ganhando espaço em todo o mundo, é preciso segurança na definição de suas regras, o que só se consegue por meio da lei, e não através de atos normativos produzidos unilateralmente por uma das partes interessadas.

É preciso, ainda, garantir que direitos não sejam suprimidos, assim como assegurar a paridade de tratamento entre as partes. Caso contrário, tais programas não passarão de relações em que os controlados buscam, obsessivamente, a aprovação dos controladores dessa rede.

*Advogado e professor de Direito Tributário

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