Criminalizar devedor de ICMS é um equívoco

17 de julho de 2019 às 0h01

Arthur Pattussi Bedin / Rafael Zanardo Tagliari *

Recente tese capitaneada pelo Ministério Público e acolhida por setores do Poder Judiciário tem preocupado o meio empresarial e mobilizado a comunidade jurídica: trata-se da criminalização da inadimplência de débito regularmente declarado de Imposto sobre Circulação de Mercadorias, o ICMS.

O imposto estadual é incidente na venda de produtos e na prestação de rol específico de serviços, sendo o respectivo valor registrado em destaque no documento fiscal emitido pelo vendedor da mercadoria ou prestador do serviço que, após procedimento de apuração e prestação das informações à Fazenda competente, fica obrigado ao recolhimento do tributo devido aos cofres do estado respectivo.

É justamente no descumprimento exclusivo desta última obrigação, de recolhimento dos valores, que o Ministério Público (em especial o catarinense) concebeu a aludida tese criminalizante com suposto escoro no artigo 2º, II, da Lei 8.137/90 (Crimes contra a ordem tributária).

Trata-se, todavia, de equívoco jurídico, econômico e histórico. Jurídico porquanto o artigo da Lei 8.137/90 utilizado como fundamento do alegado crime não contempla a conduta que se quer criminalizada (ICMS declarado e não pago), o que ocorre por diversas razões, a mais evidente delas o fato de que, em que pese naturalmente ser repassado o custo tributário ao consumidor final, o empresário não cobra ou desconta qualquer tributo devido por terceiro; o tributo é por ele próprio devido, débito regularmente confessado por meio da contabilização fiscal que a lei determina. Não há que se falar, portanto, em apropriação indevida de valores de terceiro.

O próprio cumprimento da obrigação acessória de declarar o ICMS devido afasta a caracterização de “sonegação fiscal”, que tem por traço característico a omissão de informações visando ludibriar a fiscalização tributária. Nada disso ocorre no caso aqui discutido.

Criminalizar o devedor tributário nesse cenário, inexistente qualquer fraude ou omissão de informações ao Fisco, implica ainda em se admitir prisão por simples dívida, o que é vedado no âmbito do Direito Internacional desde a edição da Convenção Interamericana de Direitos Humanos em 1969, norma internacional adotada sem ressalvas pelo Brasil no ano de 1992.

Dessarte, absolutamente incongruente permitir-se a automática persecução criminal do devedor que declara ICMS próprio quando a jurisprudência já assentou entendimento pela inadmissibilidade da apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos, bem como a impossibilidade de imediata repercussão de eventual execução fiscal sobre a pessoa do sócio-gerente, vide Súmulas 323 e 430 do Supremo Tribunal Federal.

Equívoco econômico dado que, em tempos de lenta recuperação econômica, a criminalização da contingência empresarial representada pelo endividamento fiscal é mais um tijolo na parede da instabilidade jurídica do ambiente negocial do País, notório em sua incerteza e aleatoriedade. Ao risco de falência e endividamento se soma a real possibilidade do encarceramento do empreendedor em ruína.

Ora, é singelo o exercício lógico de que este estado de coisas induzirá os atores econômicos em crise, dada inexistência de distinção entre inadimplência e sonegação, ou à adoção desta última conduta por simples juízo de conveniência, ou mesmo à desistência do ímpeto empreendedor, ambas condutas indesejáveis sob qualquer aspecto.

Calcula-se, segundo informou a Defensoria Pública catarinense nos autos do Recurso em Habeas Corpus 163.334, que o número de empresários enquadrados no entendimento vai superar 200 mil só nos estados de São Paulo e Santa Catarina.

Finalmente, equívoco histórico dado que não se pode deixar de invocar aresto do Supremo Tribunal Federal datado de 21/12/1971, RE em HC 67.688/DF, prolatado em tempos ditatoriais, no bojo do qual aquele tribunal entendeu inconstitucional o artigo 3º do Decreto-Lei 1.060/69 (com redação do Decreto-Lei 1.104/70) que autorizava o ministro da Fazenda a proceder à prisão administrativa do contribuinte que deixasse de recolher aos cofres da Fazenda Pública o valor dos tributos de que é simples detentor.

Enterrado em 1971, volta a nos assombrar o fantasma da prisão por dívida fiscal. Em tempos de normalidade institucional, se espera que o mesmo Supremo Tribunal Federal dê conta de seu definitivo sepultamento.

Os contribuintes que eventualmente se vejam processados devem insurgir-se energicamente por intermédio dos meios de defesa postos, não permitindo que prospere o entendimento criminalizante sustentado por setores do Ministério Público. Por mais nobre que seja seu intento, a tese ministerial é absolutamente insustentável e desproporcional.

Passados mais de três séculos, a máxima de Thomas Jefferson permanece: o preço da liberdade é a eterna vigilância.
 
*Pós-graduados em Direito Tributário e Sócios do escritório Bedin & Tagliari Advogados Associados

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