Dona Maria Ilka

1 de fevereiro de 2019 às 0h05

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Foto: Flávia Bernardo/ALMG

ROGÉRIO FARIA TAVARES*

Seis e meia da manhã: Dona Maria Ilka tateia o criado-mudo à procura dos óculos. Sem eles, levantar-se e localizar os chinelos pousados ao pé da cama é tarefa impossível. Encosta no copo de água e na cartela de comprimidos para dormir. Roça o celular com a ponta dos dedos, desativando o despertador. Agasalhada pelo robe de chambre, atravessa o quarto sonolenta, na direção do banheiro, onde se lava, metódica, no ritual cronometrado invariavelmente em quinze minutos. A roupa do dia de trabalho, já disposta em local apropriado, combina os tons pastéis adequados ao figurino sóbrio da chefe de gabinete.

Na sala, a funcionária consome o austero desjejum: pão integral, café sem açúcar, a quantidade exata da ricota autorizada pela doutora Virgínia, a metade de um mamão papaia. Na volta ao banheiro, fio dental e escova de dentes: primeira vez; escova para a língua; escova de dentes: segunda vez; finalmente, o enxaguante bucal, a toalhinha para secar o rosto, o batom discreto. Antes de sair de casa, vence rapidamente os degraus que levam à entrada do porão, e confere se os cadeados estão corretamente fechados.

O dia de trabalho é longo e exigente. Dona Maria Ilka redige memorandos e relatórios, cobra tarefas de dois ou três auxiliares, adverte outros tantos por desempenho insuficiente ou desídia. Ralha com a estagiária que cometeu erros imperdoáveis de gramática na redação da circular encomendada.

Aproveita o ensejo para proferir lição a respeito. Após extenuante reunião da diretoria, prepara a ata e pede ao office boy que colha as assinaturas devidas. No breve intervalo para o almoço, aproveita para arrumar algumas gavetas de sua sala e certas pastas do arquivo de documentos reservados. Come uma fruta e toma o shake prescrito pela doutora Virgínia.

Por um segundo, teme haver esquecido algum dos cadeados abertos. A onda fria do medo percorre a sua espinha. Dona Maria Ilka sabe que qualquer deslize pode ser fatal.

À noite, depois da porção de carne branca e vegetais prescrita pela nutricionista para o jantar, toma outro banho, e, já com as vestes adequadas, espera que a campainha toque. O visitante é pontual. Sabe que qualquer atraso pode fazer com que perca uma de suas melhores clientes.

Dona Maria Ilka é amável. Pergunta se o convidado aceita um copo de água, um suco de laranja, um refrigerante, se teve tempo de jantar, se quer um sanduíche, se precisa ir ao toilette. Polido, ele agradece, informando já estar pronto. Animada pelo que ouve, a funcionária empertiga a coluna, acende o olhar e faz um pequeno movimento com a cabeça, que o visitante sabe bem o que significa. Juntos, descem até o porão, o molho de chaves entre os dedos finos e longos da mulher, pintados no esmalte de cor neutra. Com a respiração levemente alterada, dona Maria Ilka destrava cada um dos cadeados com empenho e satisfação, abrindo a porta que dá acesso ao cômodo mais amplo e bem equipado da casa. O visitante se interessa pelas últimas aquisições, compradas no exterior, lançamentos que só viu pela internet. Dona Maria Ilka estufa o peito, orgulhosa, dizendo que procura estar sempre em dia com as novidades: “Sou uma mulher do meu tempo, garoto”.

*Jornalista. Da Academia Mineira de Letras

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