Historinhas do cotidiano (VII)

22 de setembro de 2018 às 0h01

Cesar Vanucci*

“Na prosa descontraída de rua, as pessoas costumam botar pra fora os sonhos mais loucos..” (Domingos Justino Pinto, educador)

Duas moças e um rapaz, de aparência simples, colegas de trabalho ao que pude depreender, deixam escorrer seus sonhos e ambições na fila de apostas da mega-sena acumulada. Uma das moças garante: se acertar, vai satisfazer um sonho antigo. Conhecer a Bahia. Promete levar junto, como convidada, a amiga do lado. A outra agradece, sorrindo, o convite antecipado. Pede o testemunho do rapaz para o caso de ter que vir a cobrar a promessa da companheira. Anuncia também seu próprio projeto de vida, caso pegue a bolada. “Saio por aí, num jipe, sem lenço nem documento, sem destino. Vou acampar só em lugar bonito, harmonizado com a natureza. Depois de me fartar de viagens, monto um restaurante vegetariano na praia de Jericoaquara, no Ceará.” As asas da imaginação do moço levam-no mais longe. Se conseguir enfiar a bufunfa no bolso, pretende arranjar casamento, mas, pelo visto, não será com a namorada de muitos anos, conhecida das duas moças. “Eu penso em procurar aquela artista de televisão”, confessa. “Qual delas?” – indaga uma das interlocutoras. “A da novela das oito, que só entra no ar depois das nove… -,” assinala, soltando gargalhada. “A Débora Secco?” “Não, não é essa não…” “Então a Glória Pires?” “Também não.” “Uai, então quem?” Ele faz uma pausa, olhaA pro lado, se assegura da certeza de que ninguém mais está ouvindo a conversa e, num tom cúmplice, quase murmurando, responde à pergunta da amiga: “A mulher da novela por quem eu arrasto asa é a que faz o papel de Laureta em “Segundo Sol”, Adriana Esteves. Aquele jeitinho dela bole pra valer com os meus neurônios. Se ela topar, depois que eu meter a mão no prêmio lotérico, junto os trapos…” Mal acaba de falar, a moça do guichê chama pelo próximo apostador. Ele registra seu palpite, despede-se e se manda, todo lampeiro, carregado de sonhos, rua afora.

“Cotidiano”, segundo Sebastião Rezende, em o “Itinerário do não”: “Limpe os pés / Não entre sem bater / Não fale com o motorista / É proibida a entrada / Só para sócios / Proibido / Não fume / Aperte a campainha / Espere a sua vez / Não pise na grama / De ordem do Senhor Juiz / Estacionamento proibido / Zele pelo que é seu / Silêncio / Pague primeiro / Tire as fichas no caixa / Você pagará multa / Tire o chapéu.

O médico recomenda fisioterapia para a coluna. Sugere também a mudança do colchão. A patroa lembra que a vizinha do apartamento ao lado é vendedora do produto. Ele topa logo a ideia de procurar a moça, criatura provida de dons suficientes pra arrancar assovios prolongados de peão pendurado em andaime de obra. No espichado papo travado ao telefone, ela projeta com persuasivos argumentos as “incomparáveis” vantagens da marca de um colchão existente na loja. Como isso não se revele o bastante para fechar o negócio, confessa-se disposta a oferecer ao comprador em potencial, como atrativo adicional, um “sleeping test”. Explica, caprichando na pronúncia em inglês, que se trata de uma inovação recentemente introduzida pelo setor marqueteiro do estabelecimento, novidade supimpa trazida de Miami. O já quase adquirente do produto ofertado alvoroça-se com a proposta. Pensa besteira. Conta pros amigos: “Nunca ouvi falar de nada parecido. Aí tem dente de coelho. Tá me parecendo insinuação pra uma coisa qualquer. Tenho que conferir”. Foi. Sem a cara metade. Conferiu. Na volta, aos risos, comentou na roda do bar: “Não foi nada daquilo que eu maliciei. O tal “sleeping test”, ou que outro nome tenha, não passa de um simples convite pra você aboletar-se por alguns instantes no colchão do mostruário. Encurtando razões: trata-se de uma outra gritante manifestação de frescurice vocabular. Oferecer teste em língua de gringo para experimentar colchão é mesmo o fim da picada…Tamos perdidos”.

* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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