O Corvo (XI)

16 de fevereiro de 2019 às 0h01

Marco Guimarães*

Nova projeção tem início, com uma legenda anunciando uma nova ocorrência.

A legenda, como uma fumaça a se esvair no ar, lentamente desaparece e cede lugar a um filme que parece projetar o quintal da velha casa do meu avô. Vejo um bebê que, a julgar pelas fotos dos álbuns de família, parece ser eu, sentado sobre um grande lençol branco com as extremidades bordadas, onde se podem distinguir duas borboletas com asas multicoloridas. Essas borboletas parecem voar em reconhecimento sobre alguns ramos que abrigam folhas verde-amareladas e flores com diferentes tonalidades de roxo. Uma mulher negra, de aparência robusta e sorriso fácil, estende roupas em um varal de arame preso às extremidades de duas árvores. Vez por outra, ela dirige o seu olhar a mim, talvez para verificar se ainda estou onde me deixaram. Ainda não posso ficar de pé, mas já sei engatinhar; poderia ensaiar uma escapada e me aproximar de uma pequena vala, construída para irrigar a horta de pés de alface e de couve plantados pelo meu avô. A meu lado, um cachorro parece montar guarda e estar pronto a me defender de qualquer coisa.

Uma leve brisa acaricia as folhas das árvores que me servem de sombra, balançando-as docemente e afastando umas das outras, permitindo, assim, que um ou outro raio de sol ilumine o meu rosto. Por um tempo, para me proteger desses raios solares, sou obrigado a fechar os olhos. Vez por outra, dou um sorriso, parecendo muito feliz, embora ainda esteja muito longe de saber o significado exato dessa palavra.

Uma outra mulher, mais jovem, se aproxima com uma mamadeira contendo um líquido amarelado, parecendo suco de laranja; em seguida, me pega no colo e me faz beber o conteúdo da mamadeira. Quando termino, ela me retém em seu colo, mas logo depois me coloca no lençol branco e vai embora.

Estou prestes a dormir quando uma gritaria interrompe a calmaria reinante e me chama a atenção; um cão com as ancas caídas, focinho retesado, deixando à vista poderosos caninos e intensa salivação, se aproxima de mim com uma atitude pouco amistosa. A audição da mulher negra, provavelmente debilitada pela idade, a impede de compreender o significado dos gritos de alguns homens que, com enxadas e foices, vinham bem atrás do cão. Por um momento, ela fixa o olhar neles, mas logo se distrai. — Cachorro danado, cachorro danado, pega, pega! Ele vai morder o menino!, gritavam eles. Quando ela finalmente entende o que dizem, volta-se para mim e reúne todas as forças que as suas varicosas e frágeis pernas ainda tinham para tentar me proteger, embora soubesse que a sua agilidade não lhe permitiria chegar a tempo de impedir o cão raivoso. Seu rosto, que antes mostrava serenidade, passa agora a expressar o pavor daqueles que se veem diante da morte.

Uma poderosa patada que o cão dá em meu corpo me faz rolar alguns metros; uma nova investida: o agressor finca sua garras em meu pescoço, e o sangue começa a jorrar, tingindo de vermelho-vivo o lençol branco onde eu estava, àquela altura sujo também com o suco de laranja que vomitei.
Então o meu fiel cão de guarda deixa a bola com que brincava e se atraca com o raivoso cão, àquela altura um rival impiedoso, movido por alterações neurológicas que lhe conferiam muita força. A intervenção de meu fiel escudeiro rende-lhe uma fatura muito alta, que exige o fim de sua existência. Quando os homens finalmente chegam, eliminam o cão raivoso com as armas que tinham em mãos. Há agora naquele espaço muitas pessoas, atraídas pela confusão e curiosas para ver os dois cães estirados junto à grama amarelo-esverdeada, queimada pelo rigor do sol do último verão.

Enrolam-me em um outro lençol e entram comigo em um carro preto, um antigo Chevrolet, provavelmente dos anos 1940. Dentro do carro, vejo Robelinda segurando-me. Ao seu lado, a mesma mulher que aparecera no hospital quando a minha mãe fora baleada, parecendo, mais uma vez, não ser notada pelos que socorrem. Sou levado às pressas para algum lugar, certamente um hospital, sem emitir qualquer choro ou sinal que pudesse ser indício de que algo estranho houvesse ocorrido comigo.

  • Escritor. Autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal” e “A escolha”

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