Pensando a democracia

16 de fevereiro de 2019 às 0h01

Adelaide Baeta e Nair Costa Muls*

Que vivemos uma espécie de desvirtuamento da democracia, muito pouca gente duvida. Nesse contexto, gostaríamos de partilhar com os leitores do DIÁRIO DO COMÉRCIO uma discussão sumamente importante nos dias de hoje, em palestra proferida pelo prof. Boaventura de Souza Santos, da Universidade de Coimbra. Doutor em Sociologia pela Universidade de Yale (1973), Boaventura dos Santos é uma das mentes mais lúcidas do mundo acadêmico internacional. Grande conhecedor dos problemas da Europa, debruça-se também, com especial atenção e clareza, sobre os problemas da América Latina e do Brasil.

Essa palestra foi proferida no contexto do projeto “Pensando a democracia, a república e o Estado de Direito no Brasil”, organizado por professores da UFMG (Heloisa Starling e Leonardo Avritzer), com o patrocínio do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, através do BDMG Cultural. O ciclo foi fechado na segunda feira (11), com a palestra do prof. Boaventura de Souza Santos, tendo como debatedores os referidos professores.

Trazendo à baila a questão da democracia não só no Brasil como no mundo inteiro, a grande pergunta colocada pelo palestrante foi bastante instigante: existe compatibilidade entre democracia e o capitalismo de hoje?

E um dado interessante: analisando a questão da democracia colocada desde os gregos, Boaventura mostra que a democracia só foi realmente possível com o capitalismo, e que, durante algum tempo, os dois sistemas conviveram lado a lado de maneira relativamente razoável, apesar da contradição entre as duas realidades, já que a primeira se funda na participação da coletividade; e o segundo, na lógica do capital, que se assenta na mais valia e na busca de um lucro cada vez maior. Se nas origens da ordem democrática, só os proprietários podiam votar e, naturalmente, votavam a favor dos interesses do capital, com o crescimento e a expansão da democracia, as relações foram sofrendo mudanças. Esse processo histórico foi bastante longo, tomando mais força depois do inferno hitleriano e dos desastres da Segunda Guerra Mundial (por exemplo, só em 1962 reconheceu-se o direito do sufrágio feminino na Europa!). Passa-se então a reconhecer o direito de todos participarem na configuração da vida coletiva e, em prol da industrialização, reconhece-se que setores estratégicos para a economia deveriam ser estatizados (água e energia, por exemplo); assim como caberia ao Estado a condução de uma política social que garantisse os direitos básicos dos cidadãos, tais como saúde e educação. Também ficou concertado o papel dos sindicatos e a necessidade de os ricos pagarem os impostos devidos. O capitalismo aceitou, mostra Boaventura, mas como essa lógica tem limites, registra-se, desde então, uma tensão crescente entre a soberania popular que defende seus direitos básicos (saúde, segurança, educação, previdência social, bens que, segundo

Boaventura, não devem e não podem ser monetizados…), o papel do Estado nesse processo e os interesses do capital. Tem origem então um quadro de instabilidade permanente, surgimento de ditaduras e uma crise crescente da democracia, que se acentua a partir de 1980, com o capitalismo financeiro/rentista regulando a democracia. Nesse quadro, uma das exigências fundamentais do capital é a diminuição dos impostos a serem pagos pelos mais ricos, o que vai sobrecarregar sobremaneira o Estado. A fonte da sustentação das políticas sociais passa ser o endividamento. E a dívida pública, que só aumenta, vai quebrar o País. A privatização é vista como o caminho: a educação, a saúde, a previdência, são áreas extremamente rentáveis para o capital privado.

Registra-se, desde então, uma mudança na democracia, que se vê sitiada por duas forças essencialmente diferentes: a das ideias e a dos preços. O mercado dos preços manipula a seu bel prazer, e com o aval e a total submissão do Judiciário, o mercado político, o das ideias.

Diante desse quadro de desvirtuamento da democracia, Boaventura nos dá uma esperança, acenando com uma nova utopia. Podemos sim, resgatar a democracia. Mas, em primeiro lugar, devemos superar as ameaças: a da guerra econômica promovida, alimentada pelo neoliberalismo que se espalha pelo mundo; e a da fábrica de ódio, de medo e de mentiras que espalha sobre nossas mentes e corações, trazendo o pânico da insegurança e a confusão mental que impede a percepção da verdade.

E em segundo lugar, adotar as medidas necessárias para assegurar a democracia: entre elas a defesa da educação pública; e a construção de uma nova Declaração dos Direitos Humanos, mais abrangente e mais atual, incluindo aí, dois direitos fundamentais: o direito da natureza, dos rios, dos ecossistemas de modo a garantir a preservação do meio ambiente e defesa do Planeta Terra; e o direito à moral, à ética e ao conhecimento real da nossa história, uma historia marcada pelo colonialismo e pelo capitalismo. Como vemos, temos saída, mas cabe a nós assumirmos a tarefa.

  • Doutora em Engenharia da Produção pela Coppe/UFRJ, professora aposentada da UFMG/Face; Doutora em Sociologia, pela PUC/SP e professora aposentada da UFMG/Fafich

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