Qual é o seu número?

19 de outubro de 2018 às 0h05

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Foto Fernando Frazão Ag Brasil

Rogério Faria Tavares *

Cansado de mover-se pelo mundo de joelhos, ousou um movimento inédito – e arriscado – com o qual jamais se atrevera a sonhar: com a força dos braços, projetou o tronco para a frente e para cima, impressionando-se com sua desconhecida capacidade de propulsão. Com muito custo, logrou sentar-se em um tamborete de madeira. Ainda era difícil acreditar que havia se elevado a alguns palmos do chão. Passara a vida toda se arrastando, a vista topando com as pernas das pessoas que circulavam pela cidade sobre os pés. Nada indicava que, algum dia, seria capaz de livrar-se dessa condição. Por isso, não era fácil entender porque sucedera a ele tal acontecimento. Um simples golpe de sorte? Algum merecimento de que não se lembrava? Não tinha a menor idéia. O fato é que demorou um pouco a acostumar-se com a nova posição, mesmo sendo bem menos dolorosa. Girou o pescoço para recolher impressões gerais. Localizou amigos e parentes ajoelhados, as costas curvadas, o peito encolhido, as mãos palmilhando as calçadas e o asfalto quente das ruas, queimando os dedos. Um desprezo inesperado tumultuou-lhe as emoções.

Do cantinho em que passou a observar as coisas, reencontrou o fantasma do medo sobrevoando o ambiente, formando espessa nuvem sobre as cabeças e os corpos das mulheres e dos homens ajoelhados. Podia, agora, encarar o bicho sob outra perspectiva.

Riu, encabulado, do pavor que sentia ao deixar-se envolver por aquela névoa. Abaixou a cabeça, ainda envergonhado do seu sentimento de alívio. Assim que voltou a pesquisar o entorno com os olhos, flagrou pessoas de seu antigo círculo de relacionamento disputando as migalhas jogadas do alto. Lembrou-se do tempo em que o seu céu era o comprido tampo da mesa de jacarandá sob a qual passara a infância, disputando restos de comida com cães. Criança faminta, acreditava que o banquete da vida jamais seria servido a seres como ele, o cabelo desgrenhado, o rosto vincado, a boca suja e desdentada, insuficiente para morder o mundo.

Recordação amarga veio quando as botas começaram a pisar nos queixos, bem perto de onde se acomodara. Era ainda muito novo na primeira vez que o atingiram, com um chute vindo de trás, a mira na cervical. A dor entrara pelos poros, deixando para o seu sangue e os seus nervos a lição que se deve aprender bem cedo: ‘obedeça’.

Confuso entre as lembranças, demorou um pouco a perceber a presença do homem que se acercara de seu humilde tamborete de madeira, segurando um par de botas nas mãos bem tratadas. Apresentou-se de modo polido e suave, com o sorriso simpático e a fala amena. Não tardou a informar o motivo da visita. Sem esforços prolongados, conseguiu que o ocupante do tamborete, obediente, calçasse o modelo oferecido, vistoso, sedutor, de cano alto, o couro cru, importado da Europa.

‘É para pisar nas formigas, meu chapa. E nos besouros. E nos grilos.’ Era a primeira vez que experimentava os pés. Expandiu os dedos dentro das botas, sentindo-se aquecido, confortável. No mesmo dia, para testar os efeitos, matou uns tantos insetos. Com o tempo, viciou-se. Não parou mais.

* Jornalista. Da Academia Mineira de Letras

* Jornalista. Doutor em literatura. Presidente emérito da Academia Mineira de Letras.

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