Loteria

15 de fevereiro de 2019 às 0h05

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Foto: CHARLES SILVA DUARTE

ROGÉRIO FARIA TAVARES*

Ermelindo Silva levantou-se da cama, naquele dia, convicto de que o sonho da madrugada indicara a alteração da sua sorte. A senha por que tanto esperava havia, finalmente, sido dada. Disso, ele não tinha a menor sombra de dúvida. ‘A maré vai mudar’, sentenciou para si mesmo, solene, em frente ao espelho do banheiro, enquanto enxugava o rosto com a toalha já desgastada pelo uso. Profeta que percebe aproximar-se o cumprimento da Palavra, sabia que teria que agir com disciplina e pontualidade, como quem não pode atrasar-se, nem um minuto sequer, para um encontro importante. Procurou o único terno, o da festa de casamento com Dinorá. Encontrou-o já bem desbotado, no fundo do armário, esquecido. Vestiu-se cuidadosamente, evitando produzir ruído. A esposa precisava dormir um pouco mais. Trabalhava até tarde da noite fazendo salgadinhos sob encomenda, para complementar o orçamento familiar. Depois de conferir se as cortinas estavam de fato bem cerradas, ele fechou a porta do quarto e seguiu, de meias, para a área de serviço do pequeno apartamento, onde lustrou obsessivamente o seu melhor par de sapatos. Já na sala, girou a chave da porta de entrada e saiu sereno, suave, despedindo-se da vida penosa, pronto para o seu destino de glória.

A agência lotérica ainda estava fechada. Paciente, Ermelindo consultou o relógio de pulso. Teria vinte minutos pela frente. Com o pedaço de papel em que anotara as seis dezenas que lhe haviam sido reveladas durante a noite, andou de um lado para o outro, recitando os números mentalmente, como um mantra. Arriscou entoar uma canção formada pelo encadeamento da pronúncia do sexteto. Contido por repentina apreensão, olhou para os lados, com medo de chamar a atenção de pessoas mal intencionadas, ou de aproveitadores. ‘Cautela não faz mal a ninguém’, refletiu, guardando o papel de volta no bolso da calça e calando a boca. Temeu ter sido ouvido pelo homem que fazia a segurança do banco ao lado da agência. Preferiu afastar-se um pouco mais, vindo a sentar-se num banco da praça mais próxima.

Primeiro, o pagamento de todas as dívidas. Com os juros devidos. Ermelindo era um sujeito decente, não iria deixar ninguém sem receber. Depois, a compra da casa própria, com uma cozinha espaçosa, para fazer a alegria de Dinorá. Em seguida, um carrinho, um rancho na cidade natal, férias na praia, doações para os parentes necessitados e para obras sociais. Distraído pelos próprios pensamentos, o homem deixou passar cinco ou seis minutos das oito da manhã. A cabeça excitada por tanto sonho, chegou à agência ainda um pouco tonto. Fez a aposta. Escondeu o bilhete no lugar mais protegido da carteira.

O carro surgiu de repente, avançando o sinal vermelho e fugindo sem prestar socorro. Ermelindo cruzava a faixa de pedestres, como manda a lei, como sempre fora do seu costume. O Samu veio tarde. A polícia teve dificuldade para identificar o morto, estendido no chão há mais de quinze minutos, já sem o relógio, a carteira escancarada na altura dos pés descalços. Vazia.

  • Jornalista. Da Academia Mineira de Letras

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