Rigor e minúcia

9 de novembro de 2018 às 0h05

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Foto: Marcelo Casal Jr

Navegou pelos sites especializados em concursos públicos. Verificou os vencimentos iniciais prometidos para cada uma das carreiras anunciadas. Na caligrafia elogiada desde o curso primário, anotou as cinco ou seis funções para as quais se considerou habilitado. De banho tomado e cabelo penteado, seguiu para a escola preparatória, onde se inscreveu no curso mais intensivo. Por dois anos, frequentou aulas em dois turnos. À noite, antes de dormir, ainda relia as matérias ensinadas no dia, para que o inconsciente trabalhasse de madrugada, fixando os conhecimentos, conforme o amigo neurologista lhe recomendara.

O amigo nutricionista lhe deu dicas de como manter a melhor alimentação e o peso adequado. Prescreveu dieta severa, a que Marcionílio aderiu com o entusiasmo dos que querem moldar o amanhã com as mãos. Aboliu frituras, reduziu o açúcar, controlou a ingestão de carboidratos. Os exercícios físicos completaram a rotina já repleta de compromissos. Na academia, cumpria religiosamente o roteiro desenhado pelo professor, que lhe tomava as medidas periodicamente, conferindo a performance obtida no mês anterior e projetando novos desafios. Obstinado, o rapaz atingiu as metas almejadas. Depois de algumas tentativas, foi aprovado em concurso para importante órgão do governo federal, tomando posse no cargo poucos meses depois. Seu peso parou de oscilar.

Atingidos os objetivos no campo profissional e na saúde, Marcionílio conferiu a lista elaborada ainda na adolescência e viu que era chegada a hora de se casar. Navegou por sites especializados em relacionamentos, mas desconfiou de todas as ofertas de encontros amorosos. Na academia, passou a reparar se havia alguém que pudesse lhe interessar. Fixou-se em quatro ou cinco pessoas. Fez a primeira abordagem, sendo mal sucedido. Lembrando-se das vezes em que fora reprovado nos concursos, insistiu com as demais, voltando a fracassar.

Indócil, finalmente rendeu-se a reiterado conselho do amigo jornalista, ativando sua vida social, no início a contragosto. Em uma festa qualquer, finalmente conheceu Doraci, cuja vida pregressa pesquisou obsessivamente, por todos os meios possíveis. Animado pelo resultado das buscas, iniciou aproximação progressiva, que resultou, dois anos depois, em namoro e união estável.

Doraci era a companhia ideal, agradável e educada, adestrada no manejo das coisas da casa e do casal. Conforme combinado previamente, preparou o lar para a chegada dos gêmeos, adotados depois de penoso processo, do qual o pai não desistiu hora nenhuma, nem nos momentos mais difíceis. Foram batizados com o nome dos avós: Márcio e Abílio. Bem cuidados, cresceram fortes e saudáveis, para alegria geral, sobretudo de Marcionílio, que para eles planejou futuro brilhante.

O destino, porém, manteve seu poder de pregar peças. Desobediente, Márcio abandonou a melhor escola da cidade em troca da paixão pela música. Sumiu no mundo. Abílio fez quase o mesmo, em nome do amor pela moda. Parece que está no norte da Europa. Doraci pegou uma pneumonia. Morreu rápido. Marcionílio envelhece, sozinho e inconformado, na casa projetada, com rigor e minúcia, pelo amigo arquiteto.

* Jornalista. Da Academia Mineira de Letras

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