Vamos falar de culinária exótica?

3 de janeiro de 2019 às 0h01

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César Vanucci*

“Queijo de leite de búfala? Deixa isso pra lá! Meu estômago fica todo embrulhado.” (Reação de dona Jerônima, doméstica)

Configuração gráfica requintada emoldura sugestiva coletânea de textos sobre gastronomia. Foram produzidos por gente afeiçoada ao ofício das letras e a práticas de preparo de iguarias saborosas. Refiro-me ao livro “O Sabor das Letras”, recentemente lançado em inspirada iniciativa dos jornalistas Ricardo Camargos e Virginia Castro com o valioso aval do Sistema Fecomércio MG. Em 224 páginas, ilustradas com esmero, a publicação reúne colaboração de 59 pessoas. Mestres de cozinha e jornalistas que assinam trabalhos contendo magistrais receitas culinárias e interessantes crônicas que mergulham fundo, com “gosto da verdade”, conforme acentua Ricardo Camargos, na história cultural da gastronomia brasileira. Dois dos trabalhos estampados são de autoria deste desajeitado escriba. Recomendando com ênfase a leitura do livro, vou aqui reproduzir as crônicas que escrevi.

O amável convite é para jantar regado a transbordantes taças de bebidas finas e culinária sofisticada na base de carnes exóticas. Rega-bofe pra neguinho nenhum botar defeito, assegura, orgulhoso, o promotor do evento. Agradeço, penhoradíssimo, mas tô fora. Não “se” dou bem, como se diz em dialeto roceiro, com comilança extravagante. Carne de javali, ou de avestruz, rã, jacaré, queixada, codorna, perdiz, capivara, tatu, tartaruga, polvo, coelho, nem pensar. Iguarias que tais não fazem parte, jeito maneira, da dieta do neto predileto de dona Carlota. Um amigo chegado, que estranha muito minhas idas constantes a restaurante japonês para saborear sushi, garante que ainda não me dei conta da predisposição que carrego para práticas alimentícias estritamente vegetarianas. Sustenta, convicto, que na hora em que me dispuser, espírito desarmado, a ver o documentário “A carne é fraca”, essa inclinação fatalística naturalmente aflorará. Com inaudita impetuosidade, diz ele. E com desdobramentos práticos impensáveis. “Aconteceu comigo” – acrescenta – “e com muita gente boa por aí”. Esperar pra ver. Volto ao sushi, para confessar que, em mais de uma oportunidade, esses saborosos enroladinhos de arroz com tiras de peixe cru já me puseram no foco de situações pra lá de desconcertantes. Tanto é que resolvi, de tempos a esta parte, pensar algumas vezes antes de convidar alguém para degustar, em casa de pasto nipônica, seus famosos acepipes. A assimilação de processos culinários diferentes, meio assim à queima-roupa, é para a maioria das pessoas dificultosa pacas. Por inevitável associação de ideias, estou me lembrando de que a carne de paca está também inexoravelmente excluída de meu cardápio.

Trago para o leitor, a propósito, amostra de uma situação danada de embaraçosa, vivida anos atrás. O constrangimento correu por conta de uma sugestão precipitada, posto que muito bem-intencionada, oferecida a grupo respeitável de amigos e conhecidos que demonstrou interesse em participar de um jantar suculento após dia inteiro de fatigante esforço físico e mental. Éramos umas dez pessoas. Saíamos, naquele momento, da Casa da Indústria, após uma rodada de negociação em torno de contrato coletivo de trabalho com os representantes de aguerrida corporação profissional.

Minha a sugestão: por que não comemorar os bons resultados da reunião recém-encerrada num restaurante oriental? Todo mundo topou a ideia. Antes não tivesse topado. Já que os pratos constantes do menu eram vistos como baita novidade pela totalidade dos comensais, sobrou para o único componente da turma a apregoar as excelências da comida a responsabilidade pelos pedidos. A encomenda foi feita no capricho. Iguarias coloridas e aromáticas foram tomando a mesa debaixo de olhares, a princípio, curiosos e, depois, meio assustados. O saquê da entrada foi sorvido, com uma nesga de desconfiança, por um que outro convidado.

Mas, ninguém, ninguém mesmo, se aventurou a tocar, com garfo, colher, faca e, muito menos, com os tradicionais hashis, nas porções de peixe cru abundantemente espalhadas. A relutância se estendeu por um bocado de tempo. Impasse criado, o jeito foi mandar acondicionar a comida para fins de doação, fechar a conta e levantar acampamento. O apetite do pessoal acabou sendo saciado, quarteirões adiante, numa churrascaria. Aquele contato imediato de terceiro grau com a radicalizante novidade da comida japonesa deixou muito bem evidenciado não ser nada mole, pra muita gente, encarar de hora para outra proposta culinária diferente. Oportuno anotar, a esta altura, o sucedido com dona Jerônima, passadeira de roupa, uma tarde dessas. Na casa em que presta excelentes serviços, serviram-lhe, no lanche da tarde, um queijo de delicioso sabor. Esqueceram de dizer-lhe que era feito com leite de búfala. Ao tomar conhecimento da “novidade”, já na degustação do terceiro ou quarto pedaço do produto, quase teve um troço. Não conseguiu dar por finda a tarefa do dia, tais os incômodos sofridos, tratados com muitas doses de bicarbonato.

Em tempo: não averiguei na época, mas gostaria muito de ter ficado sabendo qual teria sido mesmo a reação das pessoas do albergue ao qual se encaminhou, naquela noite do jantar nipônico, a opulenta encomenda culinária estrepitosamente rejeitada no restaurante.

  • Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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