samael Mito, nascido em um sombrio dia de inverno de um impreciso ano, deveria ter sido registrado como Samuel. O funcionário do cartório, responsável pela troca de uma das vogais do seu nome, quando questionado, disse que uma estranha força o impelira a escrever o nome daquela forma.
Ele cresceu e, a contragosto, iniciou a sua educação. Digo deseducação, porque, dali para frente, os gestos educação e gentileza passariam longe dele.
PUBLICIDADE
Não há muitos registros de sua vida pré-escolar. Mas, em seus tempos de ginásio, era evitado pelos de sua turma, depois que um menino, de origem hebraica, espalhara o significado de seu nome: o anjo da morte.
Uma vez adulto, conseguiu três boas colocações de emprego. Na primeira dessas colocações, teve muitos problemas com os seus superiores e seus pares. Os problemas eram de tal monta que eles, metafórica e literalmente, o expulsaram do local pela porta dos fundos. Em sua segunda posição, apesar de seu agressivo comportamento, teve mais complacência dos colegas e, apesar de fazer algumas falcatruas e não mostrar trabalho, foi suportado por muitos e muitos anos. Até que, cansado de nada fazer, resolveu deixar o seu segundo emprego e alçar voos maiores. Conseguiu, favorecido por um contexto em que a mentira, a injustiça e a hipocrisia reinavam absolutas, alcançar um posto desejado por muitos.
O seu sono, que jamais fora tranquilo, piorou desde então. Dormia pouquíssimas horas, fato que acentuou a sua sempre presente intolerância. E foi, então, que, na madrugada de um certo dia, ele acordou assombrado com dois sonhos que tivera.
No primeiro deles, viu-se comandando alguns marinheiros de um grande navio, o qual, pela sua construção, deveria ser dos séculos XVI ou XVII. Um guarda o acompanhava e ordenava que várias pessoas entrassem naquela embarcação.
PUBLICIDADE
— A partir de hoje, todos vocês estarão confinados neste local — disse o tal guarda.
Samael olhou para uma grande placa presa ao mastro, onde se lia: “Stultifera Navis”. Como não tinha a menor ideia do que aquilo significava, pediu ajuda.
— E, então, perguntou-se: “O que faço aqui em uma nau de loucos?”
De repente, uma forte nuvem caiu sobre o local. Não se enxergava um palmo à frente do nariz. Quando a névoa se foi, o navio havia desaparecido. Agora ele se via em uma ilha, confinado com mais uma centena de pessoas. Dirigiu-se a uma mulher que, como ele, fazia parte do grupo, e, rispidamente, perguntou o motivo de estarem ali.
— Ora, você não sabe? Vejo então que realmente perdeu a razão.
— Perdi a razão? Como assim?
— É um louco, entende? Ah, agora quem parece uma louca sou eu, achando que você poderia entender a minha fala.
— Sua idiota, sou louco coisa nenhuma.
— Então, meu senhor, por que essa pergunta tão tola?
— De tola ela não tem nada. Só quero saber onde estamos e porque eu apareci nessa ilha. Há pouco eu estava em um navio, como capitão, em algum ano do século XVI ou XVII. E agora, de repente, me vejo aqui.
— Acho que o senhor é mais doido do que eu pensava, mas parece ter momentos de lucidez. Pois bem, estamos em pleno século XVIII. Sorte a sua em ser um capitão em um navio nos séculos que dizia estar. Se fosse um dos passageiros seria um monte de ossos no fundo mar.
— Não entendi.
— Esse tal navio era para os loucos daquela época; um verdadeiro passaporte para a morte. Eles os colocavam lá e os afogavam em alto-mar. O senhor era um dos verdugos da época.
— Verdugo? Não entendi.
— Além de louco, é ignorante. Como foi mesmo que o senhor chegou a capitão de um navio que matava gente? Esquece. Os tempos mudaram. Não nos matam, mas somos considerados uma ameaça política. Nossas perturbações podem causar perigo aos governos, ao qual talvez o senhor pertencesse. Entende agora? Mas, como diz o velho clichê, “não há mal para que sempre dure”. O regime que antes o apoiava, agora o renega. Resultado: está aqui internado.
E aí veio o seu segundo sonho. Nele, ele viu, diante da grande janela de sua ampla residência, não muito longe dali, dezenas de viaturas policiais e vários carros pretos. Em seus tetos, luzes de néon piscavam em frenético ritmo e lançavam no ar faíscas de raios que, alternando-se entre as cores azuis e vermelhas, refletiam-se nos pálidos e cadavéricos rostos dos policiais presentes. Mas, o que mais lhe chamou a atenção eram os vultos das pessoas presentes no local, que, de tão numerosas, lhe lembravam os comícios políticos animados por grandes artistas. Súbito, um ruído o despertou.
La fora a madrugada corria solta. A cidade ainda estava imersa nas ondas de sono de seus moradores, embalados pelo equinócio da primavera. Sem sono, resolveu pegar a motocicleta e sair para dar uma volta.
Para sua surpresa, ao entrar na grande reta que dá acesso à sua residência notou que o cenário visto no seu segundo sonho se tornara real. Lá estavam de novo os carros com suas luzes de néon. Aproximou-se, notou que havia um corpo estirado no chão, com traços de sangue espalhado pelo asfalto, tal qual a onda de uma maré baixa o faria, ao avançar suavemente sobre a areia, deixando ali a sua marca.
Aproximou-se mais um pouco, quando a sua posição lhe permitiu ver o cadáver, empalideceu, a sua visão turvou-se e um princípio de desmaio ameaçou o seu equilíbrio. Rapidamente voltou-se para a motocicleta. Diante do seu espelho retrovisor, tentou tocar a sua face e pressionar o seu queixo com os dedos. Não conseguiu.
— Você está morto, meu caro. Agora terá que pagar pelas mortes que provocou, disse-lhe um assustador e desfigurado ser que, flutuando no ar, começou a cercá-lo.