IDEIAS | Carta do diabo

28 de abril de 2021 às 0h15

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Crédito: Freepik

Informo ao caro aprendiz que renunciei à minha última nacionalidade e me tornei chinês. Foi a pedido do governo local que não cansava de me assediar, a me pedir ideias para uma hecatombe devastadora na qual meu novo país levasse vantagem. Tive a ideia de uma guerra biológica, mas os militares locais a desvalorizaram por que estavam mais interessados em corrupção na confecção de novas armas bélicas poderosas e caras, que em ouvir a opinião desse experiente sábio que lhe escreve. Não se assuste: há muito a muralha deixou de ser impedimento para corrupção neste país.

Certo dia, chamaram-me para visitar um novo laboratório em uma pequena cidade do interior. Queriam que eu examinasse um novo elemento químico ausente da tabela periódica e descoberto recentemente. Um jovem, desvalorizado e inteligente infectologista, tímido e a trabalhar em um canto do laboratório, chamou-me a atenção. Acreditas em coincidência? Pois ela aconteceu.

O jovem estava à procura de uma solução devastadora no mundo na qual o meu novo país investiria boa parte da fortuna depositada em títulos americanos comprando ações negociadas em bolsa, aeroportos, estações de televisão e emissoras de rádio, essas coisas que dão dinheiro e são formadoras de opinião, se houvesse uma pandemia causada por um diminuto vírus que ele pretendia inventar e tudo parasse. Saiba que meus novos patrícios são comunistas do pescoço pra cima. Dele pra baixo, são interesseiros capitalistas. Além disso, aqui acontecem dessas coisas do diabo (ops! desculpe-me o ato falho): imagine só, um infectologista à procura de solução econômica.

Conversamos por meia hora e eu o compreendi e ele a mim. Não comentei nada com ninguém sobre o que falávamos para não espalhar a informação de que eu havia encontrado meu melhor discípulo.

Encontramo-nos novamente dias depois na minha nova cidade numa tarde na qual eu estava a observar as crianças no parque, imaginando qual delas, pelo trato com o colega, poderia me auxiliar no futuro. Já sem esperanças de encontrar um infante com caráter idêntico ao meu, o jovem médico se aproximou e completou nossa conversa anterior, a expor sua ideia, coincidente com a minha, e mostrou o que ele já havia criado com afinco e de quem me orgulhei de imediato.

Brilhante rapaz, desperdiçado pelo Partido, sempre preocupado em quem bajula mais o secretário de plantão. Percebi ali mesmo que ele não só era uma pessoa diligente e interessada em encher meus pulmões de ares infectados e depois expeli-los em multidões ingênuas, como seria um auxiliar diletante no futuro quando desencarnasse e fosse pra minha Hades querida.

Apresentei-o para o secretário, que somente o cumprimentou como alguém importante depois que lhe falei das suas ideias e que eu as aprovava. Fiz o secretário ver que essas bobagens de gastar dinheiro com engenheiros militares para confecção de armas poderosas estavam superadas. Yunzen é o nome do médico e o Partido deveria reverenciá-lo, começando com o secretário. Fiz-lhe ver ainda quanto o jovem cientista era dinâmico e pensava grande e em longo prazo. Finalmente o velhote concordou e escancarou os dentes, portas e portões para meu novo e querido aluno.

Lembra-se de minha ausência há alguns meses? Eu e ele fomos para o laboratório e lá ficamos durante seis semanas ininterruptas até termos certeza de que o vírus que havíamos criado seria capaz de aniquilar muita gente em todos os lugares deste planeta. Fizemos uma experiência local e tudo deu certo. Morreram 55% de uma população pequena, mas todas saudáveis do ponto de vista clínico e que não resistiram ao vírus por mais de duas semanas.

Senti-me realizado e sabedor de que breve teria minha casa cheia de novos moradores, boa parte deles constituída da clientela de sempre: grandes políticos corruptos, assassinos, torturadores, ladrões e mais o que você imaginar, interessado que sou em encher meu espaço de almas perversas e capazes de multiplicar minha população no local que Dante chamou de inferno. Eternamente seu, Belzebu.

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