IDEIAS | Jung, Papini, Oviedo e os negacionistas

27 de março de 2021 às 0h15

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Crédito: Freepik

Ao escrever essa crônica, não vejo como deixar de entoar cantos fúnebres para evidenciar o meu absoluto espanto com os negacionistas. Aqueles que, apesar de todas as evidências, ainda insistem em afrontar as regras impostas para o enfrentamento do vírus pandêmico que nos assola. E aí vem a pergunta: por que fazem exatamente o oposto do que foi recomendado pela ciência?

Adotarei aqui alguns pontos levantados por mim em um texto que escrevi há alguns anos. À época falei sobre o suicídio inconsciente, obviamente sem recorrer ao amparo psicanalítico de um Freud (1856-1939) ou ao substrato sócio-filosófico de um Durkheim (1858-1917). Também não o farei agora. Resolvo, uma vez mais, me amparar em alguns fragmentos da obra “Relatório sobre os homens”, de Giovanni Papini (1881-1956). Ele nos dá uma ideia muito clara sobre intimidade humana. O contexto de sua obra volta-se para o narcisismo, e há ali uma frase que merece reflexão: “O homem ama-se e desama-se.” Mais uma vez, não me atreverei, com receio de que possa estar cometendo uma heresia psiquiátrica ou psicanalítica, a classificar e relacionar todos os negacionistas como narcísicos. Mas, para mim, conseguem assumir uma duplicidade de caráter na qual personificam um instinto que, se por um lado é suicida, por outro lado, não deixa de ser criminoso.

 Mas cabe, nesse momento, uma dúvida: Será que os tais que se negam a evitar aglomerações, a usar máscara, a se vacinar, já se amaram um dia? Refaço: sabem eles o que é o amor?

Faço, aqui,como de hábito, mais uma digressão, e comparo o inconsciente pessoal a um edifício de apartamentos. Chamarei esse edifício de unidade funcional. Em cada um desses apartamentos, deveriam morar os sentimentos, os pensamentos, as lembranças e percepções organizadas em torno de um núcleo. Esses moradores, que são o grupo de representações emocionalmente carregadas no inconsciente, constituem as unidades funcionais do inconsciente pessoal de cada um, estudadas por Jung (Carl Gustav).

Pois bem; ao que tudo indica, as ignorâncias desses tais negacionistas parecem ter expulsado desse prédio todos os seus moradores, reservando para si todo o espaço do imóvel. Aí o tal núcleo do qual falei acima se desfaz. E o prédio desaba, levando consigo a sedimentação das boas experiências que herdaram, destruindo, também, as suas percepções da realidade. Resultado: o comportamento que eles deveriam ter dentro da sociedade é substituído por ações capazes de fazerem mal a si próprios e aos próximos.

Arquetipicamente falando, as pautas do comportamento, que representam essencialmente um conteúdo inconsciente, normalmente, após se conscientizarem e serem percebidas, se modificam em cada consciência individual em que surgem. Em pessoas normais, essa transformação e modulação respeitam “o bom senso” e as normas de convivência na sociedade, o que não ocorre com os negacionistas.

Há alguns suicidas não convictos que, após terem tentado sem sucesso morrer antes do tempo, desistem de uma segunda tentativa. Guardando-se as devidas proporções, penso que, de uma forma geral, a potencialidade suicida dos negacionistas desaparece quando entram, ainda conscientes, em um hospital com baixa saturação de oxigênio. Ali, com a morte prestes a descer-lhes a foice que os levará para o além, se arrependem. Antes do agravamento dos seus quadros, se veem vítimas de uma desagradável sensação, a de que podem morrer com muito sofrimento, e que se vierem a óbito serão enterrados sem a presença da família. Enquanto pacientes, à espera de suas horas finais, já não mais se lembram do passado remoto, onde tergiversaram das atitudes que poderiam ter lhes salvo. Não poderão, contudo, fugir de suas imaginações quanto ao futuro próximo que os espera.

Para terminar, volto rapidamente ao tema narcisismo. Entre os inúmeros mitos clássicos narrados por Ovídeo em “Metamorfoses”, destaco aqui o mito de Narciso, o qual foi condenado a apaixonar-se pelo seu belo e próprio reflexo na lagoa de Eco. Bem, pudesse eu reescrever a obra de Ovídeo, os meus Narcisos seriam os negacionistas, obrigados a verem os seus reflexos em qualquer espelho. Mas com uma grande diferença: a imagem refletida, longe de ser bela, mostraria a face de um monstro.

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