O avanço das casas de apostas online no Brasil começa a mudar o cotidiano em regiões antes afastadas da cultura digital. Em fazendas e pequenas comunidades rurais, trabalhadores têm se tornado alvos de um vício silencioso, impulsionado pela promessa de ganhos rápidos e pela facilidade de apostar pelo celular.
Segundo levantamento do Itaú, os brasileiros gastaram R$ 68 bilhões em jogos virtuais nos últimos 12 meses — o equivalente a 0,22% do PIB nacional. Parte desse dinheiro sai de bolsos apertados, especialmente nas áreas rurais, onde o impacto econômico e emocional é mais devastador.
De acordo com o sociólogo Marcelo Pereira de Mello, da Universidade Federal Fluminense (UFF), o público das bets nas zonas rurais é composto, em grande parte, por trabalhadores de baixa renda que enxergam nas apostas uma saída financeira.
“Esse apostador contumaz, geralmente das classes mais desfavorecidas, tende a encarar a aposta como investimento e acredita que ‘investindo’ pouco dinheiro pode multiplicá-lo. Quando essa perspectiva se associa a um comportamento compulsivo, torna-se a fórmula perfeita para o vício e o comprometimento da renda familiar”, explica.
O resultado é um ciclo de perdas e endividamento. Pequenos produtores e diaristas, muitas vezes sem acesso a crédito formal, passam a comprometer parte do salário ou da produção em tentativas de “recuperar o prejuízo”.
Aposta no celular, prejuízo na lavoura
Com a popularização dos smartphones e planos de internet rural, o vício chega cada vez mais longe. Em várias regiões agrícolas do país, o intervalo do almoço ou o descanso após a colheita se tornaram momentos de rolagem frenética em aplicativos de apostas esportivas.
Para muitos, o hábito começou com curiosidade e virou dependência. Pesquisas do Instituto Locomotiva mostram que 51% dos apostadores relatam aumento de sintomas de ansiedade, e 42% admitem usar o jogo como fuga emocional das dificuldades do dia a dia — um alívio momentâneo que, na prática, aprofunda o estresse e a sensação de impotência.
“É como o uso de drogas recreativas. Muitos experimentam e param. Mas outros tantos desenvolvem dependência e passam a precisar do jogo para manter o mesmo nível de estímulo”, compara Mello.
Regulação ainda coloca o peso no jogador
A nova regulamentação do governo federal para o setor, que entra em vigor em janeiro de 2025, inclui exigências sobre “jogo responsável”, mas especialistas afirmam que a responsabilidade é empurrada ao apostador.
A medida, elaborada pelo Ministério da Fazenda, prevê que as plataformas ofereçam ferramentas de autocontrole e monitoramento, mas sem impor limites objetivos de tempo ou valor apostado. O governo argumenta que regras rígidas gerariam distorções, devido à diversidade de perfis de apostadores.
“As medidas de proteção ainda são frágeis e se apoiam, basicamente, em grupos civis como os Jogadores Anônimos. Não há um controle efetivo de acesso aos sites, o que permite até que menores de idade driblem as exigências para apostar”, critica o sociólogo da UFF.
Influenciadores e o público vulnerável
Outra preocupação é o papel das redes sociais na disseminação das bets. A professora Daniela Juliano Silva, do Departamento de Direito Privado da UFF, alerta para o risco de exposição de menores a esse tipo de publicidade.
“Nesta semana, o Instituto Alana denunciou ao Ministério Público de São Paulo dez perfis de influenciadores mirins promovendo sites de apostas. É um público hipervulnerável, e isso fere o Estatuto da Criança e do Adolescente”, destaca.
Segundo Daniela, as empresas precisam comprovar a adoção de códigos de conduta e boas práticas de publicidade. O Conar (Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária) já determinou que toda propaganda do setor inclua mensagens de alerta, como “Jogue com responsabilidade” ou “Apostas envolvem risco de perdas financeiras”.