Empresas que oferecem serviços de cidadania italiana no Brasil aproveitaram a temporada de descontos da Black Friday para divulgar campanhas promocionais, mas a estratégia provocou forte reação entre especialistas e autoridades. O sociólogo Daniel Taddone, referência na área, fez um apelo público pedindo autocontenção e criticou o tom mercantil de anúncios como “November del Cavolo” — trocadilho considerado ofensivo por parte da comunidade ítalo-brasileira.
“Vocês sabem que esse tipo de propaganda será usado contra nós. Pelo amor de Deus, tenham um pouco de escrúpulos”, escreveu Taddone em suas redes sociais, destacando que o problema não é o serviço em si, mas a forma de divulgação, que pode reforçar a percepção de que brasileiros buscam o passaporte italiano apenas como um “acesso facilitado à Europa”.
O próprio governo italiano tem se manifestado contra a exploração comercial do tema. Em março deste ano, o vice-primeiro-ministro Antonio Tajani apresentou, em uma coletiva de imprensa, anúncios de empresas brasileiras que prometiam até 30% de desconto para quem quisesse “tirar a cidadania italiana”. Ao exibir as peças, Tajani foi categórico: “Ser cidadão italiano é algo sério. Não é para ter um passaporte no bolso e ir fazer compras em Miami.”
As críticas ocorreram no mesmo dia em que o governo italiano anunciou mudanças profundas nas regras para o reconhecimento da cidadania por descendência. Agora, apenas filhos e netos de italianos poderão solicitar o direito — antes, não havia limite de gerações. A medida provocou queda de até 90% na demanda por serviços de assessoria, segundo o advogado Vagner Cardoso, fundador da empresa Terra Nostra, uma das maiores do setor.
“Não é comércio, é um serviço de utilidade pública”, defende Cardoso, que emprega mais de 100 pessoas. Segundo ele, as críticas de Roma refletem desconhecimento da realidade dos descendentes no Brasil.
Sonho adiado e incertezas
Para muitos brasileiros, a cidadania italiana representa mais do que um passaporte europeu — é também um resgate de identidade e de oportunidades.
O Brasil abriga cerca de 30 milhões de descendentes de italianos, sendo 20 milhões só em São Paulo, segundo estimativas da embaixada italiana. Entre 1870 e 1920, 1,4 milhão de imigrantes italianos chegaram ao país. Hoje, cerca de 730 mil brasileiros já têm cidadania reconhecida.
O setor de assessorias de cidadania movimenta milhões de reais por ano, com valores que variam de R$ 17 mil a R$ 25 mil por processo, incluindo taxas, traduções e honorários. A nova legislação, no entanto, impôs restrições severas e determinou que quem já tem o passaporte italiano precisará comprovar vínculos reais e contínuos com a Itália — como votar ou residir no país a cada 25 anos.
Com as regras mais duras e o tom das autoridades italianas, as campanhas de “Black Friday da cidadania” passaram a ser vistas como um tiro no pé. Taddone e outros especialistas alertam que a abordagem comercial pode reforçar estigmas e enfraquecer o argumento jurídico e histórico que sustenta o direito dos ítalo-brasileiros.




