Um levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou um dado alarmante: R$ 3,7 bilhões do dinheiro recebido por famílias beneficiárias do Bolsa Família foram transferidos para casas de apostas online em janeiro de 2025. O valor representa 27% dos R$ 13,7 bilhões distribuídos pelo programa no mesmo mês.
Segundo o relatório, 4,4 milhões de famílias, entre as 20,3 milhões atendidas, tiveram algum contato com sites de apostas — o equivalente a 21,8% do total. Parte delas, aponta o estudo, já se encontra criticamente endividada.
O cruzamento de dados feito pela área técnica do TCU considerou apenas bets autorizadas a operar no Brasil, o que significa que o número real de apostas com dinheiro de beneficiários pode ser ainda maior, já que casas ilegais continuam ativas “aos milhares”.
O TCU alerta para um “elevado risco” de que contas de famílias atendidas pelo Bolsa Família estejam sendo usadas em esquemas fraudulentos. O indício surge a partir de um padrão incomum: 20% das famílias apostadoras foram responsáveis por cerca de 80% das transferências, com valores incompatíveis com a renda declarada — alguns chegando a R$ 2 milhões em um único mês.
Entre as 4,4 milhões de famílias que apostaram, 889 mil movimentaram R$ 2,9 bilhões, ou 78% de todo o montante gasto. Isso equivale a 4,37% do total de famílias beneficiadas pelo programa.
Os técnicos do tribunal destacam que esses números “não condizem com a realidade econômica dos beneficiários do Bolsa Família nem com a da maioria da população brasileira”, levantando a hipótese de uso indevido de CPFs para movimentações ilegais em plataformas de apostas.
Endividamento e vulnerabilidade social
O relatório também avaliou o impacto financeiro das apostas sobre os lares beneficiados. Mais de 800 mil famílias foram classificadas em situação de risco social ou de endividamento elevado, sendo:
- 2.818 em situação crítica,
- 23.397 em início de endividamento, e
- 774.678 com comprometimento das necessidades básicas.
A maioria, no entanto — cerca de 3,6 milhões de famílias (81,9%) — comprometeu menos de 2% da renda com apostas, o que, segundo as referências do estudo, indica risco financeiro baixo ou moderado.
Movimentações incompatíveis
Em um dos casos extremos, uma única família transferiu R$ 2,1 milhões para sites de apostas em janeiro. Outras 663 famílias movimentaram valores entre R$ 100 mil e R$ 1,4 milhão, cifras totalmente desproporcionais à renda média dos beneficiários, que foi de R$ 671,91 naquele mês.
O TCU enfatiza que parte dessas transações pode envolver fraudes, lavagem de dinheiro ou uso irregular de dados pessoais.
Diagnóstico inédito
O levantamento é o mais abrangente já realizado sobre o vínculo entre beneficiários do Bolsa Família e o universo das apostas online. Ele cruzou informações de dezembro de 2023 (base de famílias cadastradas) com movimentações financeiras registradas em janeiro de 2025.
A investigação sucede uma nota técnica do Banco Central, divulgada em 2024, que já havia apontado repasses de R$ 3 bilhões via Pix de beneficiários do Bolsa Família para empresas de apostas — embora, à época, a metodologia tenha sido questionada.
Procuradas, a Associação Nacional de Jogo e Loterias (ANJL) e o Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR)não se manifestaram até a publicação desta reportagem.




