O mundo voltou os olhos à sucessão papal — e também às histórias e curiosidades que envolvem o trono de Pedro, com a morte do Papa Francisco na última segunda-feira (21). Uma das mais intrigantes vem da Idade Média: a da Papisa Joana, suposta única mulher a ocupar o posto de Papa, disfarçada de homem.
Segundo a lenda, Joana teria vivido no século 9, mas sua história só começou a circular entre os séculos 13 e 14, quando cronistas medievais documentaram o boato. Nascida na Alemanha e filha de pais ingleses, Joana teria fugido ainda jovem para Atenas, onde se vestiu como homem para ter acesso à educação — privilégio negado às mulheres da época.
Uma mulher no trono de Pedro?
Talentosa, rapidamente ganhou destaque acadêmico e eclesiástico. Ao se mudar para Roma, passou a ser chamada de “João, o Inglês”. Após a morte do Papa Leão IV, teria sido eleita por unanimidade, exercendo o pontificado por mais de dois anos até que, durante uma procissão, entrou em trabalho de parto e revelou sua identidade.
O fim da história varia conforme a versão: em algumas, Joana é executada publicamente; em outras, morre de causas naturais logo após o parto. Seu sucessor teria sido o Papa Bento III.
Uma sátira medieval?
Boa parte dos historiadores vê a Papisa Joana como uma construção satírica da sociedade romana do período. A figura teria surgido como crítica e escárnio ao poder papal, especialmente em tempos de escândalos envolvendo a Igreja.
Entre os séculos 9 e 10, por exemplo, a chamada “pornocracia” — período em que mulheres como Teodora e sua filha Marózia teriam exercido controle indireto sobre o papado — serviu como base para lendas sobre mulheres influentes em cargos clericais.

Joana, nesse contexto, seria um símbolo de exagero e crítica social: uma mulher travestida que alcança o posto mais sagrado do cristianismo e, em pleno exercício de seus deveres, entra em trabalho de parto. Uma antítese direta da virgem idealizada pela doutrina cristã.
Instrumento de disputa religiosa
A Reforma Protestante também deu novo fôlego à lenda. Para os reformadores do século 16, Joana era a prova viva — ou pelo menos simbólica — da corrupção e decadência da Igreja Católica. Associavam sua figura à “Grande Meretriz” do Apocalipse e à ideia de que o papado era um engano teológico.
Já os católicos, em contrapartida, usaram Joana como forma de criticar a rainha Elizabeth I da Inglaterra, que liderava a Igreja Anglicana após o rompimento com Roma. Comparações entre Elizabeth e Joana buscavam deslegitimar a monarca, sugerindo que ela era tão herética e “antinatural” quanto a figura da papisa.
Gênero, poder e mitologia
O debate sobre a possibilidade de Joana ter enganado a cúria romana por anos também levanta discussões sobre gênero. Como uma mulher poderia ter passado por homem entre tantos padres e cardeais? A resposta envolve mais do que o disfarce: toca nos limites do que se entendia — e ainda se entende — como masculino e feminino dentro da Igreja.
Alguns estudiosos atuais enxergam Joana como símbolo de resistência: uma figura que questiona a estrutura patriarcal da Igreja. Outros a veem como precursora de debates contemporâneos sobre identidade de gênero — há, inclusive, leituras que interpretam Joana como uma figura transgressora ou até transgênero.
A lenda sobrevive
Apesar do consenso acadêmico de que Papisa Joana provavelmente nunca existiu, sua história segue fascinando. Ganhou vida em poemas, pinturas, peças e filmes — como os lançamentos de 1972 e 2009 que a retratam como heroína feminista.
Em tempos mais recentes, sua imagem voltou ao centro das discussões: seja no figurino papal de Rihanna no Met Gala de 2018 ou seja em uma peça teatral com uma Joana trans que já foi encenada.

Enquanto o Vaticano dá passos lentos rumo à inclusão feminina — como a recente nomeação da primeira mulher com direito a voto em um sínodo —, a história de Joana segue como alerta e metáfora: uma provocação que atravessa séculos e ainda questiona os limites do poder, da fé e da identidade.