O norte-americano Tim Friede, um ex-mecânico obcecado por serpentes, foi picado voluntariamente por cobras mais de 200 vezes e se autoinjetou venenos de espécies letais como a mamba-negra e a naja. Seu objetivo era desenvolver imunidade pessoal aos venenos — e, apesar de ter enfrentado convulsões, febres intensas e quase a morte, sua ousadia rendeu frutos inesperados para a ciência.
Friede se tornou um laboratório vivo. Através da análise de seu sangue, pesquisadores identificaram dois anticorpos capazes de neutralizar toxinas de diversas cobras do grupo dos elapídeos — como as najas, mambas e cobras-corais. O estudo, publicado nas revistas iScience e Cell, descreve um antídoto experimental testado com sucesso em camundongos, com potencial de se transformar em uma vacina contra múltiplos tipos de venenos.

Um novo tipo de antídoto: mais simples, mais abrangente
Hoje, os antivenenos são fabricados a partir do sangue de animais imunizados, como cavalos, e costumam ser específicos para determinadas espécies. Isso representa um grande desafio em regiões onde há diversidade de cobras, como América Latina, Ásia e África.
O novo antídoto é um coquetel de dois anticorpos isolados do sangue de Friede, combinados com um inibidor de toxinas chamado varespladib. Juntos, eles protegeram camundongos contra o veneno de 13 das 19 espécies mais letais conhecidas — com proteção parcial contra as demais.
A vantagem é clara: o novo soro pode ser administrado por via intramuscular, facilitando o uso em áreas rurais e sem necessidade de identificar a espécie responsável pela picada. Além disso, apresenta menor risco de reações adversas, como as comuns nos soros tradicionais.
Próximos passos: testes em cães e, futuramente, em humanos
A pesquisa ainda está em estágio inicial, mas os cientistas planejam iniciar testes em cães vítimas de picadas na Austrália, onde compartilham habitat com as mesmas serpentes perigosas que atacam humanos. Caso os resultados se confirmem, os testes em humanos poderão ser considerados.
“Não é o produto final ainda”, afirmam os cientistas ao El País. “Mas é o começo de algo que nunca foi feito antes.”
Embora o antídoto ainda não atue contra todas as famílias de cobras — como as víboras (jararacas, cascavéis) — os pesquisadores enxergam nesse caminho uma estratégia inédita para desenvolver uma vacina universal. Para regiões como a América do Sul, onde o número de espécies venenosas é alto e o acesso à saúde é limitado, o impacto pode ser imenso.