O Corvo (V)

5 de janeiro de 2019 às 0h01

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Depois de admirar por alguns minutos o belo e raro fenômeno, sem encontrar uma razão que justificasse a sua aparição, começo a me dividir entre a tarefa de observar a natureza e deixar o meu cérebro mergulhar em um mar de despovoadas ideias.

Os fortes ventos, que antes levavam os frágeis galhos de algumas árvores a se esmurrarem entre si, são agora substituídos por uma leve aragem, que docemente balança as folhas e as faz dançar, em passo adágio, um sincronizado balé.

Súbito, os meus pensamentos, prestes a cruzarem a fronteira do nada e ali se perderem, são interrompidos pelo canto de um bem-te-vi. Ele se aproxima de mim, pousa em um dos galhos da laranjeira, entoa o seu canto e, logo em seguida, faz um um voo ascendente em vertiginosa velocidade.

Com a intenção de segui-lo, apertei levemente as pálpebras e deixei, então, meus olhos caminharem até onde a minha vista podia alcançar. Ele desaparecera tão rápido como surgira, mas largara em seu lugar uma espessa nuvem, cuja cor branca formava um forte contraste com o azul-escuro que vestia o céu daquela manhã. Aos poucos, a nuvem esparramou-se sobre o cume das montanhas que circundavam aquele território, escorregou até a base e me transportou ao passado, a um passado adormecido em épocas muito distantes. Fez-me lembrar do leite fervente derramando-se sobre a velha leiteira de cobre que o acolhia, driblando o olhar de Robelinda, a velha empregada do meu avô. O pássaro que despertara a minha atenção agora se calara, e o silêncio absoluto, relíquia daqueles tempos de outrora, parecia contribuir para que, sem perturbações, eu pudesse mergulhar mais e mais nas reminiscências do meu remoto passado.

Mas essas reminiscências foram interrompidas e me vi subitamente transportado para um grande cinema, talvez um teatro, mergulhado na penumbra. Uma grande cortina vermelha, com grossos pespontos amarelos, caía de um teto com pé-direito muito alto, apoiando a sua cauda sobre um palco arredondado. Um palco em cuja parte inferior alternavam-se minúsculas luzes azul-escuras e vermelho-claras, quebrando um pouco a leve escuridão que tomava conta do ambiente.

  • Escritor. Autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal” e “A escolha”.

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