O Corvo (II)

Marco Guimarães*
Meu nome é Maurice Maurel. Sou capitão da Polícia Nacional da França, ou era; porque não sei se ainda estou vivo; talvez sim, talvez não. Mas não importa. Aqui onde estou, isso definitivamente não importa. Para mim, saber se estou vivo ou morto não faz a menor diferença.
Me importa saber, isso sim, por que todos os dias um misterioso crepúsculo desce dos céus, suavemente antecipa a noite, e me faz pensar em estranhas situações cheias de minúcias, algumas delas parecendo emergir de recônditos lugares da minha memória. Mergulho, então, em um mar de meditações, umas douradas, como as cores exuberantes das flores primaveris, outras pálidas e cinzentas, como o fim de uma estação outonal.
É aqui que tudo começa ou, quem sabe, não seja aqui que tudo termine.
Hoje estou em um lugar cercado por muitas árvores, que se agitam mais e mais ao sopro de um vento prestes a se tornar furioso. O forte bafejo do ar quente, embalado pelo doce perfume de lírios, atordoa o meu olfato e oferece as condições ideais de voo para um bando de andorinhas. Ao sabor da aquecida massa de ar, elas lentamente ganham altura, para logo em seguida, em carreira, mergulharem em desembestada velocidade, parecendo se divertir com a provisória montanha-russa que a natureza lhes proporcionou.
Sentado ao lado de uma velha laranjeira, vejo a sua sombra se projetar à minha frente. Se tivesse uma consciência como a minha, talvez essa pequena árvore, outrora com verdejante copa e farta frutificação, sentisse orgulho de ver a sua figura desenhada no solo. Mas agora não; agora que perdera para o tempo toda a sua vestimenta e se projetava no chão apenas com os seus negros e desnudos galhos, se pudesse, renegaria a própria sombra.
Um fato, então, me chama a atenção: não há vestígios da projeção de meu corpo, tal qual ocorre com a imagem do ressequido pé de laranja. — Eu não tenho sombra — sussurro para mim mesmo. — Eu não tenho sombra? — pergunto-me agora em voz alta, deixando a minha surpresa se assenhorar da situação. A sua ausência não me exaspera, mas atiça a minha curiosidade. Induzido pela inusitada ocorrência, viro-me para trás em busca daquele que deveria prover a reprodução de minha imagem no chão, como se tal atitude pudesse explicar o fenômeno. À procura do sol, faço uma rápida varredura no céu e tenho mais uma surpresa: ele se duplicara.
Como se já não bastasse me ver sem sombra, agora via dois sóis. Eles pareciam me lançar um desafio: encontrar uma justificativa para os estranhos episódios. Lembrei-me, então, do professor de geografia do meu tempo de ginásio, provavelmente muito idoso ou já morto: — Meus pimpolhos, quando a Terra troca de eixo, lua e sol nascem na mesma hora, e essa lua reflete a luz do sol com tanta intensidade que acaba por vestir a roupa do astro-rei e se passa por ele. Resultado, dois sóis: um verdadeiro e o outro falso. Mas percam a esperança de ver o fenômeno por aqui. Ele só ocorre alhures — disse ele para nos explicar, à época, o fenômeno.
— Que realidade estarei eu vivendo para ver o que estou vendo? — perguntei-me, logo após não encontrar uma resposta ancorada em plausibilidades.
- Escritor, autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal” e “A escolha”
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