O Corvo (III)
Marco Guimarães*
A quietude e o silêncio daquele ensolarado domingo de maio contrastavam com o turbilhão de vozes que Virgínia Barnoux ouvia dentro de si. Vozes de um diálogo que mantinha consigo mesma, ao pesar os prós e contras de continuar o seu relacionamento com Maurice Maurel.
Sua consciência inquisidora transformava tudo em questões, que exigiam complexas respostas. A principal pergunta que se fazia naquele momento era se conseguiria sobreviver sozinha diante do vazio que uma possível separação de seu marido traria à sua vida. Não poderia deixar de considerar, como fator agravante, a solidão que a acompanhava desde a infância, e que, vez por outra, se manifestava, terminando quase sempre em depressão.
Prestes a completar 45 anos, ela ainda não conseguira transcender por completo esse sentimento, assim como fazem os muitos de sua idade, que aprenderam com o tempo a esquecer de si mesmos através do trabalho e da vida social.
Apesar de ser diretora de uma escola no 5º arrondissement de Paris, o que tomava boa parte de seu tempo, todo o seu universo girava em torno do casamento, e o rompimento da relação com Maurice poderia desestruturar o seu arcabouço emocional, alicerçado nos anos em que estivera com ele.
— O que pôr no lugar disso tudo? — perguntou-se. Teria fôlego para começar um novo relacionamento? Um alento de esperança tomou conta dela, ao abrir a porta do armário de seu quarto. O que via, refletido no espelho desse armário, era uma mulher que resistira à insensível ação do tempo e que estava longe de aparentar a idade que tinha. Ao menos a sua autoestima ainda não fora abalada. Naquele momento, lembrou-se do que lhe dissera uma amiga, quando comentara sobre a sua possível separação: pretendentes não lhe faltarão, minha querida. Pretendentes não lhe faltarão.
Maurice também tinha consciência de que as coisas entre ele e Virgínia não estavam nada boas, mas as opções que tinha diante de si o tornavam um prisioneiro e o colocavam diante de um dilema.
De um lado, um casamento que, a seu ver, era uma monotonia só, mas que ele, por questões de obrigação, achava indissolúvel. Por outro lado, essa mesma indissolubilidade deixava implícito que ele deveria continuar com uma vida regrada e carregada de compromissos, sem o prazer de antes. Tentar voltar ao passado? Não, não a essa altura; impossível imaginar que se poderia repetir a paixão dos primeiros encontros.
Por um momento, a possibilidade de diversão fugaz com outras mulheres o entusiasmou. Afinal, a juventude já o deixara há muitos anos, mas ainda mantinha, apesar dos seus cinquenta anos, uma saúde de ferro e, como Virgínia, também não aparentava a idade que tinha.
Quem sabe não poderia conciliar as duas coisas? Ah, não. Não poderia se refugiar nessa hipótese. Primeiro porque não seria agora, depois de tantos anos, que ele trairia a sua mulher e segundo porque ele, como católico, sabia muito bem o que dizia o sétimo mandamento da lei de Deus.
Talvez a sua crença religiosa o ajudasse a salvar-se dessas contradições, porque não haveria sentido, aos olhos do Criador, manter uma relação que já se desgastara. E depois, reforçando esse aspecto, lembrou-se de Jó, que aceitou com resignação e muita paciência todas as calamidades: Deus me deu, Deus me tira.
É, mas mesmo ancorado na religiosidade, teria que aprender a ser ele mesmo, sem o outro. Porque, tal e qual Virgínia, ele também dedicara toda a vida à relação entre os dois. Pensou, então: — Hei de encontrar alguém que me ajude a sair dessa situação sem sequelas. Logo em seguida, uma ponta de desânimo tomou conta de seu rosto, quando se lembrou do que lhe dissera um amigo que casara nove vezes: — Só muda a mulher, Maurice, os problemas continuam os mesmos, continuam os mesmos, meu amigo. É inútil trocar uma relação por outra, porque todas conduzem ao fracasso. — Conduzem ao fracasso? Absurdo, recuso-me a acreditar nisso — pensou ele, ao se lembrar da afirmação do amigo.
- Escritor, autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal” e “A escolha”
Ouça a rádio de Minas