Uma tese sobre buzinação
Cesar Vanucci *
“Todo buzinador inveterado carrega dentro de si uma alma gentil ávida por mudança de sexo.” (Professor Adamastor Abaeté)
Na tradicional roda dominical, em bar do mercado, grupo de conhecidos de longa data, todos de meia idade, comentam animadamente as desventuras do trânsito urbano, cada dia mais congestionado e azucrinante.
Da troca de impressões emerge opinião, praticamente consensual, de não ser uma boa circular por aí, face aos serviços prestados pelos aplicativos e carros de praça (sugestiva denominação aplicada no passado aos taxis), em veículos próprios.
Falta de espaço pra estacionar, custos proibitivos dos estacionamentos – atividade, sabe-se lá porque cargas d’água à margem de fiscalização e regulamentação -, motoristas estressados, buzinação frenética: isso tudo é de molde a tirar do sério pacatos cidadãos ao volante.
O item relativo ao emprego, a três por dois, da buzina em cada quarteirão leva um dos participantes da roda a sugerir a este escriba a reprodução, neste espaço, de crônica a respeito do enervante problema divulgada há quase duas dezenas de anos. Pedido na sequência atendido.
Na tevê, são apontados os ruídos mais desagradáveis. Um deles: o estrondo de britadeira rasgando asfalto. Choro de bebê na calada da noite entra na lista. Riscar com as unhas a superfície verde das lousas antigamente conhecidas por “quadros-negros” é outro som indicado como capaz de quebrar o sossego público, no grau supliciante mais extremado.
Essa relação de barulhos incomodativos parece insuficiente. Não foram incluídas, pelo menos, três outras práticas atentatórias – quanto as que mais o sejam – aos bons costumes. Suscetíveis, por esse motivo, de atraírem sanções, na forma de degredo, a escolher entre o charme de Cabul e a hospitalidade de Bagdá.
Primeira: as batidas belicosas do róqui bate-estaca. Segunda: o ruído arrepiante, de dar calafrio até em múmia egípcia, de dedo molhado deslizando no espelho. Terceira: a enlouquecedora buzinação que motoristas desvairados, a pretexto nenhum, aprontam no alucinante tráfego urbano.
O buzinaço remete à figura do professor Adamastor, dono de insólita tese acerca dos riscos à saúde decorrentes do emprego descontrolado da buzina. Antes de falar da tese, contemos algo sobre o autor.
Adamastor, natural de Catas Altas da Noruega, é sociólogo, com mestrado em Kuala Lumpur, onde residiu à época em que o pai exercia função diplomática. Acompanhando o genitor em sua peregrinação profissional, morou em dezenas de países. Aprendeu idiomas, entre eles o mandarim.
Em momento de desencanto, ruptura de casamento (quinto de longa série) com uma atriz croata, alistou-se na Legião Estrangeira, indo servir no Saara tunisiano. Da convivência com culturas do oriente nasceu provavelmente sua inclinação para vivências ocultistas. Prestou serviços como escafandrista em Luxor. Foi pintor de quadros na Riviera. Atuou, ainda, como sertanista, no Roncador.
Em Belô, onde residiu por alguns anos, ali por volta do sétimo casório, andou ministrando aulas de física quântica e esperanto. Cometeu livro de versos e se envolveu na preparação de um filme nunca rodado. Sumiu, ao depois, do mapa. Uns dizem que se recolheu a monastério na Capadócia.
Outros garantem que anda por aqui mesmo, curtindo as bem-aventuranças ecológicas de uma próspera quinta recebida como herança, lá nas bandas de São José do Mantimento.
Chegamos, finalmente, à tese do polimorfo ensaísta. Juntando conceitos de gente respeitada em estudos de comportamento com pesquisas e intuições pessoais, o homem sustenta, com ardorosa convicção, a ideia de que a buzinação é consequência fatal de insopitável anseio, do desalmado buzinador, de que se possa operar, algum dia, uma radical mudança sexual em sua anatomia.
Até mesmo, pegando ao pé da letra o significado médico do verbo, recorrendo aos préstimos profissionais daquele cirurgião do Paquistão que adquiriu sólida fama mundial em operações transexuais.
O professor entrega copiosa argumentação. Casos de buzinadores inveterados, por ele próprio, exaustivamente, acompanhados. Um deles: rapaz de família abastada, morador do Carmo-Sion. Dono de frota de carros, marido de socialite.
De repente, não mais que de repente, chutou tudo pra córner. Mandou-se para Paris, depois de apoquentar, anos a fio, os ouvidos alheios e a tranquilidade das ruas com diabólicas partituras de buzina. Buzinava sem parar. Saindo e chegando. Pra chamar a atenção de alguém. Nos cruzamentos e sinais, exigindo passagem. Comemorando sempre não se sabe bem o quê. Lá onde reside ocupa, prazerosamente, o cargo de presidente do Sindicato dos Travestis da praça Pigale. Mais um caso: o de uma jovem do Calafate. Cumpria, também exemplarmente, por onde circulava, a sina inapelável da buzinadora frenética.
O berro emitido era do estribilho do hino do clube de sua paixão. Largou amigos e familiares. Foi bater com os costados em Manila. Convolou núpcias com uma halterofilista filipina, de origem cigana. Participa, na atualidade, de disputas de sumô, enfrentando galhardamente avantajados especialistas japoneses.
A tese, damas e cavalheiros um tanto quanto chegados à buzinação imoderada, é da responsabilidade exclusiva do Adamastor. Sua, a frase prefacial destas maltraçadas. Esse desajeitado escriba não tem nada a ver com isso.
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- Jornalista ([email protected])
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