Opinião

O Corvo (XVII)

O Corvo (XVII)
Crédito: Divulgação

MARCO GUIMARÃES *

A luz do spot se apaga e a face desaparece tão rapidamente quanto havia aparecido. O projetor novamente inicia o seu trabalho e projeta uma nova legenda: Maurice aos 11 meses de idade.

Uma mulher alta, rosto redondo e sorriso fácil, com fartas mamas e braços fortes, característicos de quem trabalha na lavoura, acompanhada de um menino, se aproxima de Robelinda; estende os braços e me toma em seu colo, seguindo para um quarto. Uma vez lá, ela abre a blusa, deixando à vista uma de suas mamas, e põe o mamilo com um grande bico profuso em minha boca.

— Bebe esse líquido de sua mãe de leite, meu pequeno menino; ele te alimentará e te dará a proteção para os males da vida, essa vida repleta de perigos que agora o mundo começa a te apresentar — disse ela, em um baixo tom de voz.

Pelo que sei, o leite de minha mãe secou e o jeito foi recorrer a uma mãe de leite, que havia parido um filho quase na mesma época. Dola era o seu nome.

Uma mestiça alta, mãe de quatro filhos, lavava roupa para fora e trabalhava na lavoura para ajudar o marido a sustentar a família. Muito prestativa, ainda arranjava tempo para cuidar de alguns vizinhos, fosse para desempenhar o papel de enfermeira, dar assistência a um idoso, ou fazer algum parto. Agora acrescentava aos seus gestos caridosos o empréstimo de sua mama para me alimentar.

Um menino, provavelmente com uns seis anos, olha de soslaio para a minha ama de leite. Parece que está aborrecido.

— Por que esta cara, Serginho? Você já está bem grandinho para mamar no peito de sua mãe, não acha? — perguntou Dola ao menino, que sem dar resposta saiu em correria.

Não somos irmãos consanguíneos, mas a situação parece indicar que o filho da minha ama de leite vive um momento em que inveja e ciúme parecem se misturar em um perigoso complô.

Lembro-me de que Sérgio teve de Dola carinho e atenção suficientes para, em pessoas normais, evitar a manifestação de sentimentos ambivalentes.

Estaria ele sofrendo por achar injusto dividir um leite que um dia foi seu? Ou talvez achasse que a atenção de Dola, naquele momento uma exclusividade minha, poderia se perpetuar? Fosse o que fosse, Sérgio deixara clara a sua insatisfação.

Dola ainda me tem em seus braços, mas logo me faz arrotar, me põe em um berço dentro de um quarto e sai, encostando a porta. A câmera agora se aproxima, e o meu rosto passa a ocupar toda a tela.

Os meus olhos olham para o teto, onde uma pequena lagartixa se move em busca de incautos insetos. Acompanho com curiosidade os movimentos do pequeno réptil e pareço me divertir com as suas investidas, quase todas marcadas por repetidos insucessos. Súbito, uma perereca cai em cima do pano que me cobria e, em um único salto, se aloja ao lado do pequeno travesseiro que amparava a minha cabeça, sem, contudo, me causar qualquer reação de espanto.

Agora entendo porque nunca tive, depois de adulto, qualquer reação de repugnância ou medo diante de insetos, cobras ou répteis.

Algum tempo depois, adormeço.

A câmera mostra agora a porta semifechada e um áudio com sons de passos furtivos, anunciando a chegada de alguém. A porta se abre lentamente, mostrando a figura de uma pessoa de pouca altura, e que ainda não se consegue distinguir.

Ela se aproxima do berço, e agora posso identificá-la: Sérgio, o filho de Dola. Cuidadosamente, ele pega o meu travesseiro, coloca-o sobre o meu rosto e tenta me sufocar. Acordo e começo a me debater, mas, logo em seguida, paro.

Os movimentos de Sérgio levam a perereca a saltar sobre um de seus braços, levando-o a largar o que fazia para retirar a pequena rã, com um rápido e frenético tapa. Ainda assustado, ele corre em direção à porta e sai de cena.

Dola, ao vê-lo sair às pressas do quarto, desconfia de algo e corre em minha direção. Assustada com o que vê, retira o travesseiro de cima de meu rosto, me pega em seus braços e grita por socorro.

O aparente sumiço de Maurel não inquietava muito Virgínia. Durante todo o tempo em que estiveram casados, ele sumia por dois ou três dias. No início, causava preocupação nela e nos colegas, mas, com o tempo, se acostumaram ao fato.

Ele tinha um modo muito particular de investigar; se encontrasse alguma pista ia atrás dela. Só compartilhava os seus achados com os colegas e subordinados quando se certificava de que poderia avançar na investigação utilizando o que encontrara. Ela não iria, portanto, adiar a viagem e esperar que ele aparecesse; afinal, teria que se apresentar no novo emprego em dois dias.

Sua ideia, ao sair de casa, era descer a Rue Arago e pegar o 91, ônibus que a levaria à Gare de Lyon. Dali, tomaria o trem até Dijon. Uma vez lá, pegaria um táxi para Fixin, seu destino final.

Já iniciara a jornada quando se lembrou de que havia deixado algumas peças de roupa para conserto na Rue Pascal. Resolveu, então, telefonar para Annick avisar que alteraria um pouco o seu trajeto para pegar o 91, e que isso talvez a atrasasse um pouco.

Depois se lembrou de que cerca de sete minutos de caminhada a separavam da loja de reparos, e que talvez não se atrasasse, como supusera. O plano era apanhar a roupa, retornar pela Rue Pascal até as escadas que desembocam no Boulevard Port Royal, subi-las e, uma vez lá, ir até o ponto do 91, situado próximo à esquina da Rue de la Glacière.

Após pegar a roupa, iniciou o caminho de volta e, quando chegou às escadas que a levariam ao Boulevard Port Royal, foi obrigada a se proteger da chuva que começara a cair. Uma chuva que não economizava no volume de água que despejava sobre o Quartier Latin e que tinha intensos relâmpagos como companheiros. Pensou, então:

— Sorte a minha estar debaixo dessas escadas. Mas que coisa estranha, tanto tempo sem chover, e essa chuva me aparece logo agora que estou sem guarda-chuva. E esses relâmpagos que não nos deixam em paz! Acho que quem inventou a expressão “Que raios o partam” se inspirou em um dia como esse. Ainda bem que avisei Annick que talvez me atrasasse.

Alguns minutos depois, os relâmpagos cessaram, e as nuvens e a chuva desapareceram, permitindo que o sol aparecesse e iluminasse o dia. Virgínia subiu as escadas e chegou ao Boulevard Port Royal.

Uma onda de alegria tomou conta de seu espírito, provavelmente influenciada por aquele céu azul, sem nuvens escuras a despejar água e fagulhas barulhentas sobre a cidade.

Dirigiu-se ao ponto de ônibus e, enquanto esperava, certificou-se de que endereço de Annick estava dentro da bolsa. Àquela hora o trânsito fluía bem e, em 15 minutos, chegou à Gare de Lyon. Foi imediatamente ao guichê do SNCF e pediu um bilhete para o próximo trem.

— Ida e volta? — perguntou a mulher atrás do balcão.

*Escritor. Autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal” e “A escolha”

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