O Corvo (XVIII)

O aparente sumiço de Maurel não inquietava muito Virgínia. Durante todo o tempo em que estiveram casados, ele sumia por dois ou três dias.
No início, causava preocupação nela e nos colegas, mas, com o tempo, se acostumaram ao fato. Ele tinha um modo muito particular de investigar; se encontrasse alguma pista ia atrás dela.
Só compartilhava os seus achados com os colegas e subordinados quando se certificava de que poderia avançar na investigação utilizando o que encontrara.
Ela não iria, portanto, adiar a viagem e esperar que ele aparecesse; afinal, teria que se apresentar no novo emprego em dois dias.
Sua ideia, ao sair de casa, era descer a Rue Arago e pegar o 91, ônibus que a levaria à Gare de Lyon. Dali, tomaria o trem até Dijon. Uma vez lá, pegaria um táxi para Fixin, seu destino final. Já iniciara a jornada quando se lembrou de que havia deixado algumas peças de roupa para conserto na Rue Pascal.
Resolveu, então, telefonar para Annick avisar que alteraria um pouco o seu trajeto para pegar o 91, e que isso talvez a atrasasse um pouco. Depois se lembrou de que cerca de sete minutos de caminhada a separavam da loja de reparos, e que talvez não se atrasasse, como supusera.
O plano era apanhar a roupa, retornar pela Rue Pascal até as escadas que desembocam no Boulevard Port Royal, subi-las e, uma vez lá, ir até o ponto do 91, situado próximo à esquina da Rue de la Glacière. Após pegar a roupa, iniciou o caminho de volta e, quando chegou às escadas que a levariam ao Boulevard Port Royal, foi obrigada a se proteger da chuva que começara a cair.
Uma chuva que não economizava no volume de água que despejava sobre o Quartier Latin e que tinha intensos relâmpagos como companheiros. Pensou, então:
— Sorte a minha estar debaixo dessas escadas. Mas que coisa estranha, tanto tempo sem chover, e essa chuva me aparece logo agora que estou sem guarda-chuva. E esses relâmpagos que não nos deixam em paz! Acho que quem inventou a expressão “Que raios o partam” se inspirou em um dia como esse. Ainda bem que avisei Annick que talvez me atrasasse.
Alguns minutos depois, os relâmpagos cessaram, e as nuvens e a chuva desapareceram, permitindo que o sol aparecesse e iluminasse o dia. Virgínia subiu as escadas e chegou ao Boulevard Port Royal.
Uma onda de alegria tomou conta de seu espírito, provavelmente influenciada por aquele céu azul, sem nuvens escuras a despejar água e fagulhas barulhentas sobre a cidade.
Dirigiu-se ao ponto de ônibus e, enquanto esperava, certificou-se de que endereço de Annick estava dentro da bolsa. Àquela hora o trânsito fluía bem e, em 15 minutos, chegou à Gare de Lyon. Foi imediatamente ao guichê do SNCF e pediu um bilhete para o próximo trem.
— Ida e volta? — perguntou a mulher atrás do balcão.
Por um momento, ela hesitou. Não sabia que resposta dar.
— Ida e volta? — tornou a perguntar a funcionária.
— Hum. Ah, só ida — finalmente respondeu.
— Bem, aqui está. Mas há um atraso de trinta minutos.
Virgínia pegou o bilhete, agradeceu e olhou em volta para ver se havia algum banco vazio. Levou uma das mãos à bolsa pendurada no ombro, esperando encontrar o livro que lia.
Lembrou-se, então, de que o havia deixado em uma das malas que seguiram com o carro de Annick. Ficara sem nada para ler na viagem. Dirigiu-se à livraria da gare e comprou uma revista que retratava o dia a dia de algumas celebridades.
Há muito não lia as fofocas do jet set e, ainda que não fosse seu tipo de leitura preferido, pensava poder divertir-se com a exposição das futilidades e com o narcisismo dos entrevistados.
Eram 13 horas quando Natalie vestiu o sobretudo, deixou a sua sala no distrito e se dirigiu à porta de saída. Com a mão direita prestes a girar a maçaneta, voltou-se para o policial atrás do balcão de atendimento e disse:
— Vou almoçar, volto às 15 horas. Se houver alguma novidade com relação ao capitão Maurel avise-me imediatamente.
Temendo se atrasar, resolveu alterar a rotina e não almoçar no restaurante de sempre, indo diretamente à Gare du Nord falar com Noah. — Chego antes, sento-me em um dos cafés e como alguma coisa, disse para si mesma.
Poderia ter ido com a viatura policial, caso houvesse trânsito ligaria a sirene e abriria caminho, mas preferiu tomar o RER B no Jardim de Luxemburgo; em vinte minutos ou menos estaria lá.
Quando chegou à estação, buscou um restaurante próximo ao local de embarque. Ainda que dali pudesse ver, sem nenhuma dificuldade, a chegada de Noah, enviou um SMS dizendo que havia chegado e o local onde estava. Pagou por um suco de laranja, um prato de frios, café e um éclair de chocolat.
Algum tempo depois, vê a ex-namorada chegar acompanhada de uma outra mulher bem mais jovem, ambas dirigindo-se ao restaurante onde Natalie se encontrava. Estavam de mãos dadas e mostravam, para quem quisesse ver, que o encanto e a fascinação haviam, em franca reciprocidade, se apoderado das duas. Natalie não se perturbou, fato que comprovava que entre as duas já não havia mais nada. Ela sabia que algumas pessoas, por excesso de pudor, camuflam os seus desejos e mentem com talento, mas esse não era o caso de Noah; ela tinha um exacerbado respeito pela verdade e não se importava se a verdade dita, às vezes fora de hora e sem nenhum preparo prévio, iria ferir alguém.
— Sentem-se — disse às duas recém-chegadas.
— Natalie, deixe-me apresentar a Nicole, nos conhecemos em um café, e olhe só a coincidência: ela mora em Londres. Iremos no mesmo trem!
— Fico feliz por você; ou melhor, por vocês.
— Pois é, eu expliquei tudo para Nicole. Disse a ela que você compreenderia. Ela também acabou de sair de um relacionamento; a companheira dela sumiu do mapa, sequer deu explicações.
— Pois é, acontece.
— É, mas esse caso parece muito estranho — falou Nicole.
— E porque seria estranho? — perguntou Natalie.
— Nicole, não estranhe a Natalie, ela é policial e, agora, vai querer saber mais sobre a sua amiga.
— Bem, relampejava muito. Ela saiu para ir à boulangerie da esquina da Gobelin com a Rue Pascal, mas quando caminhava pela Rue Pascal, parou para se abrigar, porque a chuva começou a cair forte. Ela me ligou para dizer isso e para avisar que iria demorar. Depois disso, não tive mais notícias.
— E você foi à polícia?
— Não. Não foi a primeira vez que ela desapareceu. E quer saber? Já me cansei dessas doideiras dela.
— E como se chama a sua amiga?
— Arsinoe. Tem a minha idade, 25 anos, cabelos e olhos castanhos, e 1,70m.
— Arsinoe de quê?
— Ah, claro, desculpe. Arsinoe Eishban.
— Obrigada pela descrição. Pode ser útil.
— Bem, temos que ir, o trem partirá em dez minutos. Sem ressentimentos, Natalie?
— Sem ressentimentos, mande notícias.
*Escritor. Autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal” e “A escolha”
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