Opinião

O Corvo (XXVI)

O Corvo (XXVI)
Crédito: Divulgação

Virgínia cochilava no sofá quando o ruído da porta sendo fechada a despertou. Abriu os olhos e, ainda na confusão dos que saem do sono para entrar no estado de vigília, pensou ver um homem diante de si. Num primeiro momento, achou que ainda podia estar dormindo e, para conferir se o que via era realidade, e não um sonho, esfregou os olhos, na tentativa de enxergar melhor.

Lá estava ele, blazer azul-marinho, camisa branca e calça jeans, bem a sua frente. Antes que ele tomasse a iniciativa de falar qualquer coisa, ela rapidamente se levantou do sofá e, como se fosse dona da casa, lhe cobrou uma explicação. Sabia que Annick morava sozinha e que há muito renunciara a compromissos amorosos, fato deixado claro pela própria amiga na última conversa que tiveram dois dias atrás.

Bem, poderia ser um parente em visita, mas aí lembrou que conhecia todos os parentes vivos da amiga, que se contados não dariam os dedos das duas mãos. Portanto, o que estaria fazendo ali aquele homem?

— Desculpe-me, o senhor é?
— Bom-dia, Sra. Eu tenho a ligeira impressão de que essa pergunta me pertence.
— Como assim? Fique sabendo Sr., Sr…, bem,
deixa pra lá, que eu sou amiga da Annick, proprietária desta casa, e que aqui ficarei por um tempo.
— Já estou há muitos anos na magistratura, mas lhe confesso que a sua estratégia de invasão de domicílio é bastante original.
— Invasão de domicílio, o Sr. está louco? E digo mais, já que o Sr. é juiz, talvez conheça o meu marido, ou melhor, ex-marido, ele é da polícia.
— Ah, pois bem, eu não sabia que ex-mulheres de policiais agora invadem domicílios.
— Podemos esclarecer isso, telefonarei para Annick agora mesmo, talvez tenha ido me buscar na estação de trem.
— Pois faça-o.
Virgínia pegou o telefone que deixara a seu lado, e, quando se preparava para telefonar, notou que estava sem rede.
— Tenho um problema, o meu telefone está fora do ar, o Sr. poderia me emprestar o seu?
— Claro, sem problemas; ei-lo, à vontade — disse ele, deixando escapar um irônico sorriso.
Este número não existe, este número não existe, este número não existe, ela ouviu da voz eletrônica, depois de três tentativas.
— Estranho, não consigo completar a ligação.
— Não consegue, hein, não consegue. Em outras circunstâncias eu a teria expulsado daqui, mas, enquanto conversávamos, a examinei, você me parece uma pessoa distinta, por isso perco esse tempo todo tentando entender o que a levou pensar que essa casa é de sua amiga Annick, não é isso? Annick é o nome de sua amiga, se não me falha a memória. Eu poderia pegar o registro de propriedade para provar que esta é a minha
casa. Mas acho ridículo ter que fazê-lo, e depois, isso me tomaria o tempo de buscá-lo, porque o documento está guardado sabe Deus onde. Mas venha comigo, vamos fazer um tour pela casa, poderei lhe provar que esta casa é minha, sempre foi minha. Mas antes preciso saber o seu nome.
— Virgínia.
— E eu sou Paul; nessas circunstâncias, até que tudo se esclareça, não posso dizer o tradicional muito prazer.
Da sala, os dois se dirigiram a um quarto, transformado em escritório.

  • Escritor. Autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal” e “A escolha”
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