Opinião

O Corvo (XXXI)

O Corvo (XXXI)
Crédito: Divulgação

Uma nova legenda na tela de projeção anuncia que o tempo avançou dois dias. Vejo-me, mais uma vez, do outro lado da montanha, à espera de Alzira, junto ao pé de uma velha guararema. Ela não tarda e diz:

— Temos pouco tempo, meu pai chegará em uma ou duas horas. Venha, temos que descer por aqui. É logo ali.

Súbito a projeção do filme é interrompida, e a tela fica branca; pus-me então a pensar em como as pessoas, cada uma a seu modo, relativizam o tempo.

— Temos uma ou duas horas — disse Alzira.

Talvez à época, essas duas horas representassem pouco tempo para ela, entretanto, poderiam ser mais do que suficientes para mim. Mas o que seria o tempo? Uma boa pergunta; aí aparece na tela do cinema: “Se não me perguntarem o que é, eu sei. Se me perguntarem, eu ignoro.” (Santo Agostinho). Porque diabos esse texto, agora? Para me dizer que nem mesmo um santo consegue definir o tempo?

Se a intenção era a de me fazer desistir de pensar no tema, o objetivo não fora alcançado. Voltei a pensar no que Alzira dissera: “Meu pai chegará em uma ou duas horas.”

— Por que agimos tanto em função da limitação de um tempo? — perguntei-me.

Uma ou duas horas, um dia, uma semana, um mês, um ano, uma vida. Uma vida? Logo imaginei a minha vida. A minha vida, cujos fragmentos me eram trazidos em breves projeções temporais bem definidas, que logo se evaporavam e deixavam de existir, como se fossem o nada. O tempo seria isso? O nada? Se assim fosse, meu passado, preso a uma linha do tempo que já não mais existia, deveria ser ignorado? Eu só existiria, agora, no presente? Mas esse presente que agora vivo, amanhã será o meu passado. Ele deixaria de ter existido só por tornar-se passado? Onde ele habitaria? Não, não. Ele deixaria de existir no presente, mas não deixaria de ter existido, permaneceria na minha memória, sim, na minha memória; assim, ela passaria a ser a guardiã de todo o meu presente, que daqui a pouco se tornará meu passado, e do meu futuro, que em instantes se tornará o meu presente. Embora tenha consciência disso tudo, essas imagens projetadas do meu passado parecem resumir-se a toda a minha existência. Sou incapaz de me lembrar de qualquer outra coisa; a não ser que sou um oficial de polícia da cidade de Paris e que me chamo Maurel, Maurice Maurel. Teria a vida me dado as condições suficientes para fazer prosperar os meus êxitos ou apenas me fez colecionar fracassos? Não sei, e, para falar a verdade, não me importa sabê-lo.

A projeção recomeça e estamos, Alzira e eu, às margens do rio.

— Olha que legal, você não acha? — pergunta ela, apontando para a piscina criada pela represa, feita por alguns troncos de árvores.
— É fundo ali? Dá pra mergulhar?
— Ahã, não é lá tão fundo assim, dá para mergulhar, mas cuidado, tem algumas pedras.
— Então, lá vou eu, digo, mergulhando em seguida. Em poucos instantes, apareço na superfície, gritando — Uhu! Você não vem?

Alzira, sentada em uma das pedras da margem, disse que preferia ficar como espectadora. Parecia se divertir a cada mergulho que eu dava.

Súbito, o seu rosto, que antes abrigava um sorriso, se torna tenso. Ela então se levanta e grita por socorro, sem se dar conta de que a mulher de pele muito branca que aparecera nas outras situações em que eu corria risco de morrer, ou quem sabe havia mesmo morrido, estava a seu lado. Vendo que seus apelos não eram atendidos, ela pula no rio e, com muito esforço, me retira de lá, desfalecido e com sangue a jorrar da cabeça.

— Ai, meu Deus! Ele bateu com a cabeça na pedra.
— Socorro, socorro, me ajudem! — grita ela.
Subitamente o filme é interrompido, as luzes se acendem.

Continuo sem entender porque estou aqui, vendo todas estas curtas e selecionadas passagens de minha vida, sempre apontando para minha morte.

*Escritor. Autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal” e “A escolha”

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