Opinião

Paralisia antitruste

Paralisia antitruste

Paolo Zupo Mazzucato*

Até pouco tempo, acreditava-se que alguns males estavam erradicados, como sarampo, poliomielite, difteria e rubéola. No meio jurídico, desde a entrada em vigor da atual Lei de Defesa da Concorrência (Lei no 12.529/2011), também se acreditava que a paralisia antitruste não ocorreria novamente. Ledo engano.

Em um passado recente, à época da revogada Lei no 8.884/94, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“Cade”) se viu por algumas vezes impedido de realizar seus julgamentos por conta de quórum insuficiente – a “paralisia antitruste”. Os mandatos se encerravam e a nomeação de novos integrantes não era feita em tempo hábil. O Congresso Nacional, ao elaborar a atual lei, reduziu de cinco para quatro a composição mínima do Plenário e estabeleceu regras de transição para que houvesse sistema de mandatos não coincidentes de seus Conselheiros. Contudo, desde o último dia 17 de julho, a autoridade concorrencial se encontra parcialmente paralisada pelo motivo que tanto se tentou evitar que novamente acontecesse. Apesar de a Superintendência-Geral do Cade (“SG”) estar funcionando normalmente, seu Tribunal se encontra com as atividades suspensas devido à composição insuficiente.

Um gravíssimo impacto, mas que não tem recebido o merecido destaque pela imprensa e a atenção do mercado é o de que nenhum ato de concentração de apresentação obrigatória ao Cade poderá ser consumado até que se restaure a normalidade na autoridade antitruste, pois a atual lei instituiu o sistema de controle prévio (a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos e na União Europeia). Em casos de menor complexidade e baixo risco concorrencial, a SG aprova sem restrições a operação. O problema é que, mesmo havendo tal decisão, as partes devem aguardar um prazo de 15 dias, referente à interposição de recurso por terceiros ou à avocação por um dos integrantes do Tribunal e, devido à ausência de quórum mínimo, esses prazos também se encontram suspensos e a eficácia do negócio fica prejudicada. Uma situação caótica.

A lei deveria ser alterada e permitir a possibilidade de avocação pelos membros remanescentes do Tribunal do Cade, fluindo-se normalmente o aludido prazo. Isso atenuaria um dos nocivos efeitos da composição a menor do Plenário. Ilustrativas são as estatísticas oficiais, que demonstram a irracionalidade da regra atualmente em vigor. Considerando o período de 2015 a julho de 2019, foram analisados 1.801 atos de concentração pelo Cade. 1.493 (82,9%) tramitaram pelo rito sumário, aquele reservado para transações de baixo risco antitruste, enquanto 308 (17,1%) foram pelo rito ordinário, aplicável nas hipóteses em que se faz necessário um exame mais detalhado. 1678 (93,17%) operações foram aprovadas sem restrições e apenas em 78 casos (4,33%) houve julgamento pelo Tribunal.

Logo, não faz sentido que operações que não apresentem potencial lesivo para o mercado – e que constituem a grande maioria dos casos – sejam afetadas pela inércia ou inoperância para a nomeação de Conselheiros. Grande é o transtorno que a falta de quórum implica para os investimentos privados nacionais e estrangeiros que dependam de autorização concorrencial e evidentes os prejuízos para a economia e a imagem do Cade e do País nos cenários interno e externo.

É bom que se diga que o Cade é uma instituição de excelência, conhecido pela tecnicidade de suas decisões e admirado no Brasil e no exterior. Neste ano, foi admitido como membro permanente do Comitê de Defesa da Concorrência da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”). Por quatro vezes (2010, 2014, 2016 e 2018), foi reconhecido pela Global Competition Review, tradicional revista britânica, como a melhor agência antitruste das Américas.

Já a Concurrences, respeitada publicação especializada francesa, agraciou a autoridade brasileira com o Antitrust Writing Awards por duas vezes com o prêmio de Best Soft Law por conta dos guias de Busca e Apreensão Cíveis (2018) e de Termo de Compromisso de Cessação – TCC (2017). É, sem dúvida, um patrimônio imaterial digno de louvor e que deve ser preservado.

Tanto nos referidos casos de saúde pública, como no institucional, a volta de determinados males tem entre as principais causas a falta de atuação a contento do Poder Público.

Fundamental que se tomem medidas urgentes para nomeação de Conselheiros para o Cade – todos eles com perfil técnico compatível com o cargo – e o consequente fim das nefastas repercussões da paralisia antitruste. Válido, ainda, se considerar a hipótese de alteração da lei para que não se impossibilite a consumação de negócios que nada tenham de prejudicial ao mercado, caso novamente ocorra a falta de quórum do Tribunal.

* Advogado, Professor da pós-graduação da FGV-SP e Presidente da Comissão de Direito da Concorrência da OAB/MG.

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