A outra face do neoliberalismo

Nair Costa Muls *
Diante das agruras que nos assolam ─ a todos nós, tenhamos ou não consciência delas ─ e esfacelam a nossa democracia, gostaria de compartilhar com os leitores do DIÁRIO DO COMÉRCIO o conteúdo de importante artigo de Mario Sotelo Felippe, advogado e ex-procurador do Estado de São Paulo, mestre em Filosofia e em Teoria Geral do Direito pela USP, publicado na Revista Cult, de 23/09/2019.
Além de nos mostrar as características econômicas do neoliberalismo, ele desvela também a outra face dessa doutrina econômica que vem tomando força nos últimos anos com o capitalismo financeiro e, de certa forma, tomou de assalto a economia e a política brasileira com o atual governo, embora nem sempre o chamem pelo nome…
O autor analisa as origens da solidificação e divulgação dessa doutrina econômica, lá nos idos da década de quarenta, num encontro no Mont Pèlerin (Suíça), que deu origem à Mont Pèlerin Society o centro difusor do neoliberalismo, apoiada por milionários, suas fundações e a mídia a eles ligada. Organizado pelo economista austríaco Friedrich Hayek, cujo livro O caminho da Servidão inspirou as discussões e conclusões do referido encontro, contou com a presença de outros economistas liberais também famosos, que pensavam em uma renovação das ideias liberais: Ludwig von Mises, Milton Friedman, Karl Popper, entre outros, que difundiram a nova visão da economia e do mundo, sem contudo verem suas ideias imediatamente implementadas. Inúmeras entidades são criadas com o objetivo de promovê-la (a American Enterprise Institute, a Heritage Fondation, o Caco Institute, o Adam Smith Institute, entre outros, que inclusive financiavam departamentos acadêmicos, sobretudo de universidades norte-americanas (Chicago e Virginia, por exemplo). Elas só tomaram corpo e concretude com as crises econômicas que atingiram os Estados Unidos e a Europa nos anos 1970, com o desmoronamento das políticas keynesianas (pleno emprego, combate à fome, impostos altos, novos serviços públicos e de segurança implementados pelos governos europeus e norte-americanos). Mas foi com Margaret Tatcher e Ronald Reagan que o neoliberalismo foi implantado de vez: corte nos impostos dos ricos, esmagamento dos sindicatos, desregulação, privatização, terceirização, competição e consumismo acirrado. O Chile, de Pinochet, também serviu de modelo . Na Inglaterra, Tatcher desarticulou e paralisou o movimento sindical inglês durante a greve dos mineiros. E nos EUA em reação à greve dos controladores de voo, registrou-se a demissão de 11 mil grevistas, banidos do serviço público. Surge assim um capitalismo globalizado, “financeirizado” e mais desigual ainda, e uma crescente precarização das condições de trabalho e de vida das massas trabalhadoras.
Mas, o mais importante do neoliberalismo, responsável inclusive pela sua aceitação crescente e geral, é que ele promove uma ruptura profunda na consciência das pessoas. A desregulamentação da economia, a privatização geral e irrestrita, a diminuição do papel do Estado, a revogação dos direitos do cidadão, características da economia neoliberal, estão assentadas na reconfiguração das relações sociais, que possibilitou a internalização da visão de mundo neoliberal. Assim, a concorrência, a competição, o individualismo e a desigualdade se tornam virtudes que definem as relações humanas; a hierarquia entre os vencedores (ricos) e os perdedores (pobres) se torna natural, pois os primeiros são mais inteligentes, mais aptos, se esforçaram e merecem a vitória; os pobres são ineptos, incapazes, preguiçosos, e, portanto, não conseguem sair do lugar, merecendo a pobreza na qual se encontram; desaparece também o sentido de comunidade, de sociedade: o que existe, como dizia Margaret Tatcher, são os homens e as mulheres, ou seja, os indivíduos e as famílias. E o mercado. A relação da parte com o todo, do indivíduo com a sociedade, a noção de solidariedade como essencial à vida social, se esgarçou e desapareceu. O que existe hoje é uma luta desenfreada de todos contra todos, do indivíduo atomizado contra outro indivíduo atomizado. O “mercado” tornou-se o rei que “assegura todos os benefícios que jamais seriam conseguidos pelo planejamento” e que cada um dos mortais receba o que merece por suas qualidades e empenho, mostra George Monbiot em seu excelente artigo “Para compreender o neoliberalismo além dos clichês”, in OUTRAS PALAVRAS, 23/04/2016.
O resultado dessa inversão de valores, dessa internalização da base filosófica do neoliberalismo? Além dos problemas econômicos ─ as crises se sucedem com gravidade cada vez maior ─ e do esgarçamento da sociedade e da democracia, registra-se, em primeiro lugar uma fragilidade psíquica e uma agressividade crescente. E mais, segundo depoimentos de psiquiatras, psicanalistas, cardiologistas, médicos e terapeutas, aumenta de maneira assustadora o índice de ansiedade, de distúrbios alimentares, de depressão e solidão, e mesmo de automutilação; transtornos psíquicos, problemas cardiológicos se tornam cada vez mais comuns. O Brasil e o mundo estão doentes. A civilização está em jogo.
O que fazer? A compreensão do que é o neoliberalismo, em suas duas faces que se completam e se explicam, nos é fundamental.
*Doutora em Sociologia, professora aposentada da UFMG/Fafich
Ouça a rádio de Minas