Variedades

O lobo bom

O lobo bom
Crédito: Divulgação

ROGÉRIO FARIA TAVARES*

O Colégio do Caraça funcionou durante quase cento e cinquenta anos. Famoso pela qualidade e o rigor da educação ministrada, em sua galeria de ex-alunos figuram pelo menos dois presidentes da República: Afonso Pena e Arthur Bernardes. Encantado pelo lugar, Dom Pedro II um dia disse que só o Caraça já valia a visita a Minas. No Museu, é possível ver a cama em que dormiu o imperador e também ler trechos de seu diário, em que ele descreve a rotina que seguiu como hóspede da escola. Fechada em 1968, depois que um incêndio vitimou parte de suas instalações, hoje a sua sede é o centro de um santuário ecológico, onde se tem a chance de conviver com uma belíssima natureza, ainda bem preservada, o que não é pouco, em se tratando de área tão visada pela mineração. Ar puro e céu estrelado não têm preço…

Com setenta e seis quartos, o Caraça serve refeições bem preparadas e bastante saudáveis, já que muitos dos ingredientes utilizados saem diretamente da sua horta. A comida é saborosa. O café da manhã é irresistível para hóspedes como eu, amante das quitandas e das delícias da gastronomia tradicional do interior mineiro. Como não ceder diante dos biscoitinhos de nata ou do bolo de laranja feitos na hora? Outro ponto de interesse é a biblioteca. Dos cerca de cinquenta mil volumes de seu acervo original, quinze mil foram salvos do fogo. Constituem uma coleção importante, composta por obras raras e muito antigas. Na igreja, uma construção neogótica de meados do século dezenove, dá para contemplar o corpo embalsamado de São Pio Mártir e o talento do Mestre Ataíde, autor da “Última Ceia”. Uma das atrações mais sedutoras do Caraça, no entanto, é o ilustre visitante que, quase toda noite, aparece no seu adro.

Talvez tenha sido a primeira vez que Carlos e Gabriela viram um ‘lobo bom’, que não planeja ataques aos Três Porquinhos ou à Chapeuzinho Vermelho. Sem ter que manter a sua fama de ‘mau’, sem topete e sem arrogância, o elegante animal sobe os degraus da centenária escadaria calmamente, como quem fez reserva em um restaurante no qual é cliente preferencial. À vontade, aproxima-se da bandeja de ossos e restos de carne deixada à sua espera. Por cerca de vinte minutos, se farta, em banquete silencioso, da comida oferecida, em nada se importando com os flashes dos celulares ou os ruídos das máquinas fotográficas. Já está acostumado. Há vários anos, os exemplares de sua espécie fazem o mesmo percurso, incentivado pelos padres que administram a instituição. O contato com os humanos se dá de modo pacífico, sem qualquer problema. O emocionante espetáculo transcorre em clima nada ameaçador, de absoluto respeito. Parece um ritual em que todos sabem exatamente como devem comportar-se. Terminado o jantar, o bicho faz o caminho de volta, mergulhando, de novo, no breu da mata que cerca o majestoso templo.

Sob risco de extinguir-se, pelo menos nessas cercanias o guará está protegido, o que sossega um pouco o coração, sobretudo nesses tempos em que a fúria destruidora voltou, com força total, a pautar o noticiário internacional. É quando não dá para escapar da frase clássica, cunhada pelo dramaturgo romano Plautus e popularizada por Thomas Hobbes em “O Leviatã”. Os leitores sabem qual é.

*Jornalista e presidente da Academia Mineira de Letras

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