Opinião

A heroína dos tempos da meninice

A heroína dos tempos da meninice
Crédito: Divulgação

Cesar Vanucci *

“É vedada a presença de menores de 14 anos em fitas em série projetadas nos cinemas.”

(Portaria do Juizado de Menores nos idos de 1940)

Recordar é viver, lembra o ditado.

E a Jean Rogers?

Que notícia, você aí que é cinemaníaco – conhecendo de cor e salteado a biografia dos “astros e estrelas que não estão no firmamento, mas nas telas deste cinema”, como lembrava o velho letreiro do Cine Vera Cruz, em Uberaba – tem para me dar da Jean Rogers?

Era a heroína das fitas em série de Flash Gordon, menos conhecido do respeitável público pelo nome de Buster Crable, campeão olímpico de natação. Sua presença loura, cheia de meiguice, ornamentava as aventuras espetaculares do corajoso precursor dos cosmonautas, em sua incessante luta contra o perverso Imperador Ming. E povoou os melhores sonhos de meninice de muita gente boa pelaí. Jean foi para uma multidão de adolescentes a namoradinha inacessível das estrelas, a referência erótica máxima de um outro mundo.

Na véspera de emocionante capítulo do seriado, o Juiz de Menores entendeu de endurecer o jogo. Menor de 14 anos não entrava. Nem acompanhado. E agora José? Ele estava com 12 anos. Mas ficar sem ver a Jean Rogers, ah, isso ele não iria ficar mesmo… O jeito era arranjar um expediente para burlar a implacável vigilância do comissário. Bolou plano genial. Com a ajuda da empregada, introduziu no sapato, na forma exata da palmilha, pedaços de jornal. Calculava, inocentemente, que assim pudesse espichar alguns centímetros. Na porta do cinema, na ponta dos pés, trêmulo, o receio estampado na carinha, ouviu a temida interpelação: – E o garoto aí, quantos anos? / É… hum… 14. Isso mesmo: 14 anos… / Cadê o documento? / Ficou em casa…/ Então, não entra. Sem documento não entra. Outro aí…

Ficou de fora. Uma inveja louca dos que conseguiam entrar. Uma raiva crescente do comissário. Aquele “coisa”, tão implacável, insensível, intolerante. Teve um pensamento de vingança com relação ao juiz: “Ele há de morrer com a boca cheia de formiga!…” Rechaçando o mau pensamento, implorou a interferência sobrenatural para que a porta do cinema se abrisse. As lágrimas a bailarem pelos olhinhos buliçosos. Não adiantou olhar súplice. Nem resmungos. Nem choro, nem vela. Ficou sem ver a Jean Rogers até o fim do seriado. O último seriado do Flash Gordon de sua infância.

Tempos depois, anunciaram um filme policial com Jean Rogers no papel principal. Uma mulher de vida desregrada. História cheia de violência. No finalzinho, uma tentativa de suicídio. Coisa muito diferente daquilo que aprendera a admirar na heroína. Comentou: – Um blefe muito grande a Jean Rogers de fora das fitas em série!

Mais tarde, já adulto, num sábado de despreocupação na Cinelândia paulista, olhando o cartaz de um “poeira”, viu anunciado o seriado de Flash Gordon. Resolveu entrar. Achou tudo muito estranho. Sentiu-se deslocado. Assim como um ancião de noventa anos num festival de música trepidante. Saiu antes do final. No espírito, uma melancolia nascida da constatação de que certas alegrias e emoções infantis são mesmo irrecuperáveis.

*Jornalista, Presidente da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais ([email protected])

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