Precarização do trabalho e ilusão do empreendedor

O cinema político europeu marcou época nos anos 60 e 70, principalmente o italiano no qual sobressaíam diretores geniais como Ettore Scola, de “Nós que nos amávamos tanto” (1974), Mario Monicelli, de “O Incrível Exército de Brancaleone” (1966), Bernardo Bertolucci, de “1900” (1976) e “O Conformista” (1970), e Marco Bellocchio, de “Diabo no Corpo” (1986). Um outro expoente da fértil geração de cineastas é o grego Costa-Gravas, de “Z” (1969). O diretor inglês Ken Loach, de “Agenda Secreta” (1990) e “Terra e Liberdade” (1995), é um dos raros sobreviventes deste movimento brilhante, responsável pela criação de uma instigante e engajada estética. Em seus filmes, questões sociais e econômicas estão sempre associadas aos movimentos políticos em curso.
Em “Você não estava aqui” (2019), seu último trabalho, Loach enfia fundo o dedo na ferida da precarização do trabalho e da ilusão do falso empreendedor errante. As lentes objetivas e cruas do diretor britânico penetram na escravidão moderna do trabalho informal, que impõe relações draconianas, intensificadas pelo uso da tecnologia digital, e desumaniza esforçados prestadores de serviços com cargas horárias excessivas e regras cruéis, destruindo suas famílias e vidas pessoais.
Com imagens fortes e diálogos dilacerantes, “Você não estava aqui” insinua que a essência do modelo de negócio que ganhou força com a recente crise econômica mundial tantos nos países desenvolvidos, como a Inglaterra, quanto nos considerados emergentes, como o Brasil, remete aos tempos soturnos do início da Revolução Industrial em 1760, com o imensurável descompasso entre direitos e obrigações dos trabalhadores.
O filme retrata a deterioração de uma família em Newcastle, na Inglaterra, como consequência direta do fenômeno socioeconômico conhecido como “uberização” e “pejotização”. Desempregado, Ricky Turner (Kris Hitchen) começa a trabalhar como motorista autônomo em um serviço de entrega, com veículo próprio que adquire com a venda do carro de sua esposa, sem nenhum direito trabalhista e com jornada exaustiva.
Sua mulher, Abby Turner (Debbie Honeywood) é cuidadora de idosos que presta um serviço extenuante por até 14 horas por dia em uma modalidade de serviço digital conhecida como contrato zero hora. Evidentemente, a relação entre eles e com o casal de filhos adolescentes se degrada progressivamente junto com o árduo trabalho informal de Ricky e Abby, virando um perverso círculo vicioso.
“Você não estava aqui” sugere nas entrelinhas que, à medida que a dialética entre capital e trabalho se desequilibra, a corda sempre arrebenta no lado mais fraco.
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