NFTs podem ser a emancipação do domínio das big techs

Diogo Fontes*
Ainda que o silêncio me seja um aliado mais frequente do que grito, confesso que a primeira vez que ouvi falar sobre os NFTs, exclamei às escâncaras: que idiotice! Diante de mim, no centro de um site já deslembrado, flutuava, em quadrados largos de oito bits, a imagem mal ajambrada de um punk vestido de boina e óculos escuros. Porém, ainda mais aviltante do que os pixels avantajados, era a manchete que sublinhava os muitos dígitos do valor de venda da digníssima obra de arte que ali estava.
Desfilei pela casa vociferando impropérios contra o rude exemplar de Sex Pistol. Quem, afinal, pagaria semelhante fileira de números por uma joça ordinária como aquela? Com as glândulas sudoríparas em fecunda produção de líquidos, quase emulei o fervor profético de Howard Beale, em Rede de Intrigas, aos berros na noite de Nova York. Da ira, sucumbi à gargalhada e do riso galhofeiro ao engasgo incontido. Mais uma moda passageira dessa geração de perdulários – julguei, quase sufocando mais duas vezes com o pigarro acumulado sob a proeminência do pomo-de-adão.
Retomando o fôlego à normalidade, me reconheci nas patéticas figuras que questionam a validade de uma representação artística simplesmente por não compreenderem seu contexto histórico e as minúcias do seu processo criativo. Sem tirar nem pôr, minha veemência tinha a mesma face obtusa, o nariz arqueado, os lábios premidos, os chistes de enfado de um crítico academicista do Salão de Paris indignado com as telas de Cézanne, Manet, ou Pissarro.
Com seus ângulos retos e um misterioso sorriso de Pacman, aquele punk aguilhoava meu pretenso bom gostismo e tencionava minhas mais aferradas crendices estéticas. Estaria me tornando um defensor da fineza, da elegância e do requinte? – tríade que sempre repudiei. Ou pior: um censor de costumes? Com o relógio já virado ao avesso da madrugada, descobri, finalmente, o nome da peça: crypto punk, uma das mais celebradas coleções de NFTs desse excêntrico mundo da web3.
Uma ideia velhaca, dessas que nos fazem sentir gênios às três da manhã, sobrevoou-me a cuca. Rilhei as unhas como o apostador que sonha com o milhar na placa de um caminhão. O visgo do empreendedorismo pregou-me os lábios. E se eu criasse minha própria coleção de NFTs? Minha própria legião de punks – decretei, convicto. Montaria uma força tarefa de filhos – afinal, quem melhor que eles, tão hábeis com suas mesas digitalizadoras – produzindo incessantemente, dia e noite, punks em massa para a peleja armífera dos leilões da Christie’s e Sotheby’s. Deitado sobre o relevo do teclado e à luz azulada do monitor, sonhei com um infinito engarrafamento de caminhões exibindo números auspiciosos em suas placas dependuradas.
Os milhões não vieram. Claro. A força de produção se amotinou naquela mesma manhã. Óbvio. E nunca mais sonhei com placas de caminhão. Mas, ao longo do tempo, os NFTs, surpreendentemente, passaram a fazer parte da minha vida profissional. Essa especialidade que surgiu com um espasmo de raiva numa noite ociosa consolidou-se a partir do reconhecimento técnico dos NFTs como uma das mais importantes infraestruturas do mercado emergente da web3.
Por absoluto desconhecimento da tecnologia que sustém esse tipo de ativo, os NFTs ainda são capazes de protagonizar debates acalorados em pontos de ônibus, lanchonetes de esfiha e elevadores da Faria Lima. À parte o valor desmedido pago por alguns itens, os tokens não fungíveis são a argamassa para a construção daquilo que vem sendo chamado de ownership society – em síntese, a sociedade da propriedade digital.
A frase do jornalista norte americano, Andy Lewis, – “se você não paga pelo produto, o produto é você” – soa como vaticínio para os nossos tempos. Nesse contexto, os NFTs podem ser a emancipação do domínio das big techs. Se você possui os seus dados pessoais, por exemplo, pode optar por vendê-los. Se entende que o seu post em uma mídia social gera interesse e catalisa visualizações, pode valorá-los para quem os deseje ler. Open source ou closed source torna-se uma escolha de quem produz conteúdo e não uma determinação top-down que usufrui do desempenho de cada um de nós para vender espaços de publicidade.
Resta uma certeza: a derrocada dos Marks, Elons, Bills e de todo o mindset de falsa liberdade instituído pelos grandes conglomerados de tecnologia será contemplada pelas enigmáticas pupilas de oito bits dos crypto punks – gostemos ou não da estética primária dos seus ângulos retos.
*CSO da DUX e Diretor Executivo da Plug_Ag
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