Viver em Voz Alta

“Vista chinesa”, de Tatiana Salem Levy

“Vista chinesa”, de Tatiana Salem Levy
Rogério Faria Tavares | Crédito: Glaucia Rodrigues

Rogério Faria Tavares *

Em “Vista chinesa” (Editora Todavia, 109 páginas), a competente Tatiana Salem Levy recria a história do estupro sofrido, em 2014, no famoso ponto turístico do Rio de Janeiro, por uma de suas melhores amigas, que autorizou a publicação de seu nome, afirmando à autora: “Não tenho vergonha do que aconteceu. Eu quero que você escreva que isso aconteceu de verdade – e que aconteceu comigo, Joana Jabace”. É Joana a primeira pessoa a quem Tatiana agradece, “pela coragem com que me contou a sua história e pela atenção com que respondeu à minha insistência pelos detalhes”.

Escrito como se fosse uma carta endereçada por Julia aos seus filhos, Antonia e Martim, o romance de fato impressiona pela excelência e pelo rigor com que suas cenas são construídas, sobretudo as que se referem à violência sexual que origina o enredo. Ela é encarada de frente, sem medo, sem disfarce, sem eufemismo. A protagonista é corajosa: decide falar. E fala tudo. Se sua voz contém dor e sofrimento, também contém resistência e força. E é portadora de uma decisão fundamental: o que aconteceu não pode ser esquecido, não pode ser apagado, nem minimizado. Não pode virar apenas um rumor. Tem que ser dito com todas as letras, ainda que isso seja um imenso desafio. Afinal, como é sabido, é bem difícil dizer o indizível, encarar a chamada ‘escrita do trauma’.

É custoso o exercício para chegar ao tom correto. Julia admite suas dificuldades: “Eu tenho vontade de sair gritando, por favor, me deem a palavra certa, aí alguém diz, não existe, as palavras certas nunca existem, mas eu não acredito nisso, eu acho que para toda coisa existe uma palavra certa e se a gente falar falar falar uma hora a gente encontra”. Ela não desiste e acaba produzindo um relato contundente, impressionante.

No trecho aqui transcrito, ela registra o momento imediatamente posterior ao ato violento: “Ele se vestiu devagar, eu imóvel, na mesma posição, à espera da bala, morreria deitada de bruços, de olhos fechados. Eu ouvia o barulho da calça, do cinto, dos sapatos, e assim que o silêncio se fez voltei a ouvir a sua voz, a voz que eu não esqueço, ordenando que eu ficasse parada nos quinze minutos seguintes, e de repente ele saiu correndo. Ele conhece a floresta, pensei, ele sabe por onde anda, para onde vai, há destreza nos seus passos, não foi a primeira vez que fez isso, pensei, outras mulheres sentiram aquela solidão terrível”.

As reflexões de Julia sobre o ocorrido permeiam todo o volume, e algumas delas são, seguramente, comuns a outras mulheres que passaram pela mesma experiência traumática: “Por que comigo?, eu me perguntei inúmeras vezes. Para eu prestar atenção em minha volta? Para ter cuidado e não ir a lugares desertos sozinha? Para eu sofrer no corpo uma dor que é das mulheres há séculos? Para acabar com minha obsessão pela magreza? Não há resposta que amenize a violência. Não há resposta que me convença. (…) Há uma dose de acaso nesse fato que me destruiu e continua destruindo? Sem dúvida. Mas há uma coisa que extrapola o acaso: o ódio daquele homem, a violência daquele homem, a permissão que ele se dava de violar o meu corpo. Isso não é acaso. Isso foi meu encontro fortuito com o mal.”

  • Jornalista. Doutor em literatura. Presidente emérito da Academia Mineira de Letras
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