Entre Moisés e Ícaro: liderança carismática não pode ser maior que a própria empresa

Carisma: (no novo dicionário Aurélio) 1. Força divina conferida a uma pessoa, mas em vista da necessidade ou utilidade da comunidade religiosa… 3. Atribuição a outrem de qualidades especiais de liderança, derivada de sanção divina, mágica, diabólica, ou apenas de individualidade excepcional. 4. O conjunto dessas qualidades especiais de liderança.
De um modo mais simples, entendida como atratividade, encanto, magnetismo ou sedução, entre outros termos, essa é uma característica cada vez mais admirada no mundo corporativo. Líderes como Steve Jobs, fundador da Apple; Caito Maia, fundador da Chilli Beans; Elon Musk, fundador da Tesla; e Rony Meisler, fundador da grife Reserva, são alguns exemplos.
O rosto deles é o próprio rosto das marcas e suas vidas costumam acontecer tanto dentro dos escritórios como nos palcos, nos programas de TV e nas redes sociais. Na era da evasão de privacidade, porém, até que ponto é saudável para os negócios e para esses profissionais e suas famílias?
Em um movimento que surpreendeu parte do mercado e consumidores, quando Rony Meisler anunciou sua saída da empresa, o efeito foi imediato: as ações do grupo Arezzo (AZZA3) caíram 5%.
E para falar sobre liderança carismática o Diário do Comércio conversa com exclusividade com o fundador e sócio da Tailor – consultoria de executive search -, Bruno da Matta Machado.
A liderança carismática é um estilo em que se destaca a capacidade do líder de inspirar e motivar os membros da equipe por meio de sua personalidade cativante e carismática, certo? Isso parece com um dom inato. É possível aprender a ser carismático?
Obviamente, para aqueles que são naturalmente mais envolventes, mais influentes, é muito mais fácil, mas sim, é possível aprender. O primeiro passo parte da verdade é ser exemplo daquilo que se pede para o outro. A minha crítica sobre a expressão “líder carismático” é que ela também pode ser, muitas vezes, interpretada como ser simpático e não é sobre isso. O carisma muitas vezes é interpretado como alguém muito expansivo e divertido, mas não é sobre isso. Muitos líderes carismáticos são pessoas mais introspectivas, mas da mesma forma são carismáticos, porque eles são admirados e conseguem influenciar pelo exemplo.
Quando pensamos em exemplos de líderes carismáticos, os primeiros nomes que aparecem estão ligados à nova economia, à economia criativa. Setores mais pesados, da indústria de base, por exemplo, suportam líderes assim?
Voltando um pouco na questão anterior, eu acho que um líder carismático precisa ser atraente, envolvente e inspirador. Ele, obviamente, é muito ligado às pessoas, à equipe. E como desenvolver isso na prática? Tem muito da mecânica de criar essa proximidade. Tenho um exemplo dentro da Tailor. A minha sócia era muito especialista, muito fechada no trabalho dela, mas tinha o desejo sincero de ser uma líder melhor. Quando ela me pediu ajuda, eu pedi que ela olhasse mais para as pessoas, que, literalmente, andasse mais devagar. Propus que toda vez que fosse na cozinha pegar um café, ao invés de voltar direto para a mesa, entrasse pela porta que passava por todo o escritório andando devagar, observando cada uma das pessoas. Ela começou a fazer esse exercício, aí ela viu uma pessoa que estava com uma carinha mais triste, a pessoa que estava ali muito atarefada e perguntava o que estava acontecendo. Esse interesse dela de se envolver e de se aproximar, com o tempo, foi se tornando natural. E hoje é uma grande líder aqui, é quem lidera a maior parte da equipe.
Finalmente respondendo a pergunta, sim, é muito possível ter líderes inspiradores em qualquer economia. Um líder que ficou na memória foi Roger Agnelli, que presidiu a Vale entre 2001 e 2011. Ele não era uma pessoa fácil. Era reconhecido como um líder muito duro, mas por outro lado ele era muito presente. Ele é quase uma unanimidade em liderança porque ele conseguia, mesmo com esse jeito dele, inspirar as pessoas e conseguir tirar o melhor delas. Ele era envolvente mesmo na forma firme dele, ele atraía as pessoas para próximo dele. Mais recentemente a gente tem outros exemplos como Gustavo Werneck, presidente da Gerdau, extremamente envolvente, ele é visto como uma pessoa carismática e inspiradora, do jeito dele mais fechado e, mesmo assim, muito admirado. Então, sim, é totalmente possível em quaisquer setores ter esse tipo de liderança. Nas indústrias mais “sexies”, essas lideranças ganham maior proporção porque elas têm uma proximidade com o público geral muito grande.
Então é como diz o ditado “A palavra convence, mas o exemplo arrasta”?
É exatamente isso. O Roger (Agnelli), por exemplo, o que ele falava você podia confiar. Não precisava de contrato, de assinatura. Ele cumpria com a palavra dele. O Roger (Agnelli) era um exemplo de dedicação, de executar o que dizia. Então aquilo atraia as pessoas não importando muito a personalidade ou o jeito dele no trato. Ele era um exemplo que inspirava.
Por outro lado, eu já ouvi você falar sobre os líderes com síndrome de “Ícaro”. O personagem da mitologia grega fica tão embriagado com a beleza do voo que ignora todos os conselhos e se aproxima do sol. Ao fazer isso, a cera que prende as asas derrete e ele cai. Qual o limiar entre o líder como “Moisés”, capaz de guiar seus liderados pelo deserto e fazer a travessia do Mar Vermelho, e “Ícaro”, que tem a oportunidade de voar, mas não aproveita?
O poder, as palmas e os louros da vitória, podem embriagar a pessoa, ela se perde um pouco com aqueles aplausos todos e aqueles reconhecimentos todos. Isso não é sobre caráter, isso é humano. Então, esse tirar o pé do chão e se perder acontece quando ela acha que o CPF dela é maior do que o CNPJ da empresa. Então, é aí que eu acho que o líder se esquece que ele carrega um sobrenome, e é por isso que ele está ali. O Rony (Meisler) chegou a ser o Rony (Meisler) porque ele é o “Rony da reserva”. O Caíto só é o Caíto Maia porque ele é o “Caíto da Chilli Beans”, e não o contrário.
E voltando ao ponto da evasão de privacidade, claro que alguns líderes são mais afeitos a essa exposição e outros não. Existe, porém, uma pressão social que acaba se transformando em pressão de mercado também, por essa exposição da vida extra-empresa. Como lidar com essa pressão? Até quando ela é saudável para o negócio e para a pessoa?
Essa exposição não é fundamental. Temos vários casos de empresas com líderes carismáticos que não vivem uma exposição pública. A J Mendes, por exemplo, em Itaúna (região Centro-Oeste de Minas). É uma empresa maravilhosa que, quem trabalha lá, ama e não sai mais, mesmo o público externo não sabendo o nome dos executivos.
E como fazer a sucessão de um líder carismático?
Nunca é fácil. Pegando o exemplo do Rony (Meisler), da Reserva. Havia um contrato que previa que ele sairia da empresa cinco anos após a venda para a Arezzo. Isso era público, mas é normal que os consumidores não tivessem essa informação em mente, mas o mercado de investidores sabia e, mesmo assim, as ações do grupo caíram. Isso mostra a força da imagem dele. Então, ainda que tenha havido uma preparação, em certa medida, foi mal feita porque nesses cinco anos ninguém ocupou esse espaço do Rony (Meisler) e nem vai ocupar.
Mais do que essa substituição por alguém de igual peso, a empresa deve se planejar e se preparar para reduzir a dependência daquela pessoa, daquela figura. Para que ela consiga continuar tracionando mesmo com a saída dessa figura, mais do que tentar achar alguém que seja tão carismático quanto.
Agora, quando é feito às pressas e acontece também com frequência, como foi com o CEO da Uber e com o CEO do WeWork, entre outros casos, e como foi agora, com o Tallis Gomes (ex CEO da G4 Educação), isso normalmente vem por alguma crise. Dificilmente esse “dia pra noite” vem sem que o substituído não tenha dado um escorregão. Se foi esse o caso, faça rápido. Não dê tempo para a crise se instalar.
Estamos falando de empresas privadas, mas isso vale também para as organizações sociais e empresas públicas, certo?
Claro! As ONGs e qualquer instituição social são empresas de serviços. Elas entregam um produto para a sociedade. Então se você tira um Edu Lira da Gerando Falcões, você põe a Gerando Falcões em xeque. Porque a confiança é no “Edu”. É uma responsabilidade muito grande. Nesses casos é muito difícil, demanda muito anos e um distanciamento para conseguir descolar as imagens do líder e da instituição.
Então a orientação é a mesma: prepare a instituição para que ela dependa o mínimo possível daquele líder carismático ao longo do tempo. Para isso, redobre a prestação de contas e fortaleça a comunicação. Aí você cria um colchão um pouco mais reforçado para essa ausência.
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