Economia

Água que transforma: entre a conquista do semiárido e os desafios da Capital

Enquanto o semiárido celebra a chegada da água encanada, a Capital lida com a conservação e aprimoramento de estruturas, como a Lagoa da Pampulha
Água que transforma: entre a conquista do semiárido e os desafios da Capital
Chegada da água na comunidade de Lapão representa alívio para a saúde, incluindo das crianças. | Foto: Diário do Comércio/Leonardo Morais

O caminho percorrido pelo saneamento em Minas Gerais se escreve em tempos diferentes. De um lado, o semiárido, que aprendeu a conviver com a escassez, recebe pela primeira vez a água encanada, carregando saúde, dignidade e esperança de futuro. Já na metrópole Belo Horizonte, a abundância aparente esconde fragilidades marcadas pela poluição, enchentes e a luta pela preservação do patrimônio público.

Nesse contexto, o mesmo direito básico assume formas diferentes, revelando um retrato desigual da infraestrutura que persiste nas residências brasileiras. O País, embora concentre 85% das pessoas nas cidades, é majoritariamente composto por pequenos e médios municípios, muitos de até 10 mil habitantes, cercados por distritos que lutam diariamente por visibilidade.

O urbanista e especialista em cidades sustentáveis e mobilidade urbana, Sergio Myssior, propõe uma reflexão sobre o conceito de moradia a partir de uma ótica holística, onde se envolve o entorno, como a presença de saneamento, energia, serviços básicos. “Se consideramos essas três dimensões, temos metade da população em inadequação, o que mostra que a raiz dessa questão não é só saneamento, mas a infraestrutura do ‘morar do brasileiro’, para além do domicílio”, pontua.

O abastecimento de água, embora não seja totalmente regular, avançou significativamente nos últimos anos no Estado e no País. Até 2033, o novo Marco Legal do Saneamento, estipula que 99% da população deve ter acesso à água potável tratada e 90% da população tenha coleta e tratamento adequado de esgoto. A normativa ainda propõe metas para redução de perdas de água, gestão de resíduos sólidos urbanos e maior transparência na prestação de serviços.

Na avaliação do urbanista, embora o novo marco tenha trazido um ambiente mais adequado para investimentos públicos e privados, ainda estamos muito distantes dessa meta. “O esgotamento, por exemplo, ainda precisa avançar significativamente. Isso mostra que se esse ritmo não mudar, o País ainda vai consumir pelo menos mais 20 anos para alcançar o estipulado”, destaca.

Além da saúde, esse cenário impacta diretamente a qualidade de vida, a educação e a produtividade, limitando ainda a geração de renda, especialmente de distritos e pequenas comunidades quilombolas e ribeirinhas.

Cada gota, uma conquista: a nova realidade de Tabua e Lapão

No Norte de Minas Gerais, moradores dos distritos ao redor de Januária receberam, há poucos meses, o que muitos consideram a maior riqueza dos últimos tempos: água potável nas torneiras. Nas comunidades de Tabua e Lapão, reconhecidas como remanescentes quilombolas e pela riqueza da cultura que preservam, cada gota simboliza uma conquista para a saúde, dignidade e a continuidade de uma história que atravessa gerações.

A doceira Sandra Moura, que recebeu água potável há poucos meses, relembra os tempos sem o recurso, marcados pela seca e longos percursos para adquirir o bem para consumo. A bomba utilizada antes, quando quebrava, impedia o acesso à água pelos moradores, que chegavam a ficar uma semana apenas com o pouco que sobrava da caixa. “Agora abrimos a torneira e ficamos despreocupados porque a água chega”, celebra.

Há seis anos, após um projeto comunitária, Sandra se dedica, junto a um coletivo de mulheres, à produção de doce de leite, cocada, goiabada e doce de banana, entre outras iguarias tradicionais, que hoje são sua principal fonte de renda. O impacto da conquista da água resultou em melhorias no dia a dia de trabalho, já que a escassez do recurso limitava atividades básicas, como a limpeza de panelas para produção de doces.

Dentro de casa, a chegada da água também representa alívio para a saúde de todos, incluindo das crianças. Rica em calcário, a água na região traz riscos quando consumida, prejudicando os rins e a higiene diária da população.

“Há muitos anos tive pedra nos rins, e o médico recomendou que eu não usasse água de poço. Tínhamos que buscar água em galões em Januária. Agora, com água 24 horas na torneira, minha família tem segurança e tranquilidade para viver melhor”, destaca a doceira.

Artesão no território quilombola Tabua espera desenvolvimento local após chegada da água potável | Foto: Diário do Comércio/Leonardo Morais

O artesão e lavrador, Miguel Arcanjo Lopes, trabalha no campo desde criança com a plantação de sementes, produção e comercialização de vassouras. Ele herdou do pai o ofício do artesanato, que em breve deve ser compartilhado com o filho, dando sequência ao trabalho, além de empregar outras pessoas na época da colheita.

Para ele, receber água potável há dois meses representa uma transformação para toda a família e a comunidade de Tabua, onde reside. Antes da chegada da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) ao distrito, Arcanjo conta que os moradores já chegaram a depender de cisternas manuais. “Colocávamos água sobre o girau para limpeza. Era uma época difícil”, recorda.

Hoje, o artesão celebra o volume de água que chega na torneira, que em casa, utiliza para beber, cozinhar, tomar banho e até cuidar das plantas. “Em poucos meses, Tabua vem se desenvolvendo com água tratada. Mais para frente esperamos uma rede de esgoto, porque a comunidade está crescendo, e isso vai melhorar ainda mais a qualidade de vida”, acrescenta.

Lavradora da comunidade de Lapão: “A água é a nossa maior riqueza hoje” | Foto: Diário do Comércio/Leonardo Morais

“Acorda pela manhã, liga a bomba e depois desliga para a outra comunidade usar”, relata. A rotina de quem não possui água 24 horas por dia é relembrada pela lavradora da comunidade de Lapão, Ivani Brito, como um sufoco, principalmente pelas gerações anteriores da família.

Antes, a moradora conta que a comunidade convivia os desafios do uso de água do poço artesiano. Além da qualidade imprópria para consumo, o sistema era limitado e frequentemente instável. Qualquer problema técnico exigia mobilizar os moradores para dividir os custos do conserto, que, em alguns casos, demorava até 15 dias para ser concluído.

O problema foi amenizado há pouco mais de dois meses, com a chegada da Copasa ao distrito, que passou a fornecer água tratada, além de toda a manutenção do trecho de rede e ligações prediais. “Antes a gente tinha preocupação de ficar sem água para beber e agora temos segurança da água em casa. É a nossa maior riqueza hoje”, acrescenta.

Embora disponível, o uso na casa de Ivani é restrito para banho e consumo. Mesmo com o benefício da tarifa social para famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), o valor da conta ainda resulta em insegurança para uso na horta e na criação de animais. “Ainda não sei o valor da conta para usar mais e por isso limitamos”, diz.

Acesso desigual: Tarifa social é insuficiente para famílias em vulnerabilidade

Reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2010, o acesso à água e ao saneamento traz atributos importantes quanto à acessibilidade para toda a população, garantindo que o preço pago ao serviço seja acessível para todas as pessoas.

Entretanto, segundo o diretor do Sindicato dos Engenheiros de Minas Gerais (Senge-MG), Alex Aguiar, o País ainda convive com uma desigualdade socioeconômica relevante, com centenas de famílias em situação de vulnerabilidade financeira. “Apesar de haver uma lei que obriga companhias a ofertarem desconto de até 50% da tarifa cobrada, nem sempre isso é suficiente”, comenta.

Segundo ele, a tarifa social é um instrumento que ajuda pessoas a conseguirem acessar esse serviço. No entanto, para a extrema pobreza, esse valor continua representando comprometimento muito elevado da renda.

Estudos indicam que gastos com serviços de água e saneamento de uma família nunca devem superar 5% do orçamento familiar. Para Aguiar, mesmo assim, esse comprometimento é ainda maior, resultando em uma dificuldade e até risco de exclusão do sistema.

Como alternativa, o engenheiro destaca soluções que precisam ser estudadas e enfrentadas. Em São Paulo, por exemplo, a tarifa social é subdividida em faixas de consumo, permitindo que famílias de baixa renda tenham descontos proporcionais ao volume utilizado. A medida busca garantir justiça tarifária, beneficiando quem consome menos e preservando o acesso à água como direito essencial.

“Seria extremamente viável aplicar divisão de tarifa social dando para mais pobres descontos bem maiores do que o aplicado”, afirma Aguiar.

Lagoa da Pampulha reflete os desafios de Belo Horizonte

Problema de saneamento que ultrapassa décadas dificulta atividades de lazer, como a pesca, no cartão postal de Belo Horizonte | Foto: Diário do Comércio/Leonardo Morais

Em Belo Horizonte, a conservação e o aprimoramento de estruturas é a discussão predominante, embora ainda existam problemas que afetam o acesso aos direitos básicos, especialmente em comunidades. No campo de gestão de resíduos, o cenário é avaliado como preocupante.

Segundo Sergio Myssior, a cidade hoje tem um potencial enorme de transformar resíduos sólidos em fonte de renda e oportunidade. “Dentro do lixo doméstico, pelo menos 30% são compostos por materiais potencialmente recicláveis”, ressalta.

Ele acrescenta que o atual mecanismo municipal destina um percentual importante do orçamento no trabalho de coleta em detrimento aos aportes no reaproveitamento de resíduos. “Destinamos cerca de 58% do resíduo sólido de forma adequada e mais 40%, inadequada, como lixões. Mesmo assim, no adequado, não dispomos o lixo, mas o resíduo, que poderia ser reaproveitado”, comenta.

Os desafios no saneamento da Capital impactam de forma severa o principal cartão postal da cidade, a Lagoa da Pampulha. Para o urbanista, o problema, no entanto, deve ser encarado como regional, já que a bacia hidrográfica ultrapassa os limites de Belo Horizonte e envolve também municípios vizinhos da região metropolitana.

“O mau cheiro, o assoreamento e a contaminação da água não são apenas reflexo da falta de tratamento de esgoto, mas do uso e ocupação do solo em todo o entorno, exigindo uma gestão integrada do território”, explica Myssior.

O desafio na Pampulha, que atravessa décadas, ameaça o patrimônio no entorno, considerado pela Unesco um bem cultural da humanidade. Mais que isso, o impacto atinge comércios e residências na região e limita atividades de lazer, como uso de barcos e a pesca, que hoje é proibida pela prefeitura municipal.

Gestão completa do território é ponto-chave para regularizar atividades no patrimônio cultural da humanidade | Foto: Diário do Comércio/Leonardo Morais

Como solução, o urbanista defende um pensamento estratégico integrado, que envolve programas de uso do solo, drenagem urbana e até medidas de educação ambiental. “Essa gestão completa do território me parece o ponto-chave, tendo em vista não só o valor ambiental, mas cultural, dada a importância que conferimos ao espaço”, conclui.

Para a cidade, o urbanista destaca a importância do legado do arquiteto chinês Kongjian Yu, criador do conceito de cidade esponja. O conceito chinês apresenta um olhar otimista para o território, dada a sua capacidade de transformação.

A ideia é que em vez de “brigar” com a água, a cidade aprende a absorvê-la e devolvê-la ao ambiente de forma natural. Para isso, os espaços urbanos são planejados para funcionar como uma esponja, que retém a água da chuva e a libera aos poucos, reduzindo alagamentos e recarregando o lençol freático.

Cidades brasileiras, como Curitiba (PR), já aplicam conceito, identificando áreas alagáveis e transformaram em áreas de lazer, parque e corredores. O objetivo é que sejam capazes de encharcar em um momento de pico de chuva, protegendo áreas urbanizadas de impactos relevantes.

“Acredito que o futuro do saneamento de políticas urbanas passe por soluções baseadas na natureza. Assim, seremos capazes de transformar cidade com política consistente e duradoura”, finaliza.

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