Historinhas do cotidiano (V)
“O mundo é um palco, os homens e as mulheres meros artistas…” (Shakespeare)
O amigo dá voz ao espanto quando o vê trazendo no prato, da mesa de iguarias, pela terceira vez consecutiva, um pedaço de peito de frango. Eles estão almoçando num restaurante onde são servidas refeições de se comer rezando. “Vai gostar de peito de frango assim, na tonga da mironga do kabuletê!” A reação do amigo estimula-o a uma cândida confissão: – “Possuo, sim, uma verdadeira compulsão por peito de frango. Isso vem lá dos tempos de criança. Nos ajantarados domingueiros, os adultos explicavam pra gente que o peito de frango devia ser deixado, em sinal de respeito, pros de mais idade. Eu ficava com vontade danada de comer, mas me submetia docilmente à regra. Ao chegar na meia idade, família já constituída, o código vigente nos tradicionais ajantarados, como no de tantas outras coisas deste mundo maluco, já era diferente. Estatuiu-se que o peito de frango ficasse reservado para o pessoal miúdo. Então, o jeito encontrado mode que enfrentar o trauma da infância distante é engolir a maior quantidade possível dessa parte do frango, quando almoço ou janto fora. A propósito, com licença, vou catar mais um pedaço, antes que acabe…”
No papo telefônico, diz chamar-se Laurinda. Confessa-se leitora constante destas maldatilografadas. Com intrigantes observações, reporta-se a artigos aqui estampados contendo críticas às posturas incoerentes que proliferam nas atividades políticas. Às tantas, dispara: “Não é correta a impressão passada nos comentários de que a incoerência seja marca dominante na ação política.” Arrisco uma contestação: “Pera lá, o que você tá afirmando contraria o que a grande maioria pensa”. A leitora não se abala. “Você já se deu ao trabalho de anotar o que elementos da situação e da oposição costumam afirmar, na maior cara de pau, em matéria de política econômica, dependendo do lado em que circunstancialmente se acham colocados, numa hora fazendo críticas, noutra hora rebatendo críticas, tudo de conformidade com o posicionamento ocasional na gangorra do poder? Os argumentos são rigorosamente os mesmos. A mudança é de posições, não de opiniões. É isso é que eu chamo de “coerência”. É ou não é?” Sutil, pacas!
Não conheço o Gustavo. Nem, tampouco, a Alessandra. Não sei o que fazem, quantos anos têm, nem onde vivem. Desconheço o sobrenome de um e de outro. O que tenho a contar a respeito de ambos foi colhido num inesperado e prosaico flagrante de rua. Acontece que o Gustavo andou espalhando faixas, em logradouros do bairro Santo Antônio, por onde costumo circular, contendo comoventes apelos endereçados à Alessandra. Pelo que entendi, ele conheceu-a num sábado desses. Tomou-se de encantamento pela moça, mas esqueceu-se de anotar seu telefone. Procura agora, ansioso, retomar o contato. Flechado por Cupido, o Gustavo quer saber onde a Alessandra mora, o número de seu celular, se ela tem zap-zap, essas coisas todas. Sugere, nas tiras de pano esticadas entre postes, que a moça retorne ao bar do primeiro encontro para que possam dar continuidade a prosa. Deveras tocado pela mensagem, resolvi dar um adjutório ao Gustavo neste impoluto espaço, para que ele chegue – quem sabe? – até a Alessandra. Tudo indica que lá no barzinho o Gustavo viveu algo parecido com aquela emoção retratada nos versos de Paul Géraldy, onde se murmura que “a gente começa a amar, por simples curiosidade, por ter lido num olhar, certa possibilidade.”.
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Anote aí, Gustavo: se o reencontro acabar acontecendo, não deixe de avisar, tá? Pode ser com faixa.
* Jornalista ([email protected])
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