As reviravoltas nos usos e costumes
“Os vícios de outrora são os costumes de hoje.” (Sêneca-55 a.C a 39 d.C)
Candinho era o que se poderia chamar de moleque endiabrado. Nove pra dez anos de peraltices. Falo de um tipo de travessura inofensiva. Tempos da escola risonha e franca, comecinho da década de 40, quando o “golquíper” do Uberaba Sport se chamava Yé. O danado do menino morava na rua Alaor Prata, Uberaba. Colegas de escola, participávamos das peladas de rua movidas a bola de pano, um pouco de briga, palavrões, de quando em vez interrompidas por culpa de um chute mal calibrado estilhaçando a vidraça da janela da casa de dona Lili.
Naquele dia, Candinho entrou em casa carregando uma vareta de bambu com estranhos apetrechos dependurados na ponta. Chegou até a cozinha, onde Gertrudes, a mãe, quitandeira de mão cheia, frequentadora de missa diária na Igreja dos dominicanos, preparava um bolo de fubá afamadíssimo, cuja receita se recusava, egoisticamente, a passar pras conhecidas. No minuto em que, ajeitando os óculos, se deu conta da natureza dos objetos trazidos pelo filho, a santa criatura quase teve um troço. O que saiu da garganta foi mais um uivo de animal ferido. Ecoou por toda rua. Ameaçando o filho com o chinelo, afogada em lágrimas, a piedosa mulher perdeu o fôlego, tendo que recorrer a sais aromáticos. O que se introduzira naquele lar honrado, temente a Deus, eram mercadorias repulsivas cuja citação a moral e os bons costumes desaconselhavam em rodas de família. Como os tempos são outros, pra não espichar a curiosidade do leitor, vou dando logo nome aos artigos causadores do bafafá. Artigos reservados para pecaminosas ações, despojados ali do invólucro de papel, soltos ao vento: camisinhas de vênus. Um punhado.
Ficou óbvio que o guri não tinha consciência da real serventia do material. Tanto que, sem propósito de fazer troça, assustado, sugeriu candidamente fosse “colocado ar naquilo pra virar bexiga”, ou, então, que se fizesse linguiça “daquelas tripas”, enchendo-as de pedaços de lombo. Na residência, logo tomada por pequena multidão face ao reboliço, alguém comentou com Jerônimo, pai de Candinho, convocado às pressas no serviço, que as camisinhas haviam sido dadas pelo dono da farmácia da esquina. O transtornado Jerônimo virou bicho. Todos se assustaram ao vê-lo anunciar um acerto de contas, garrucha na cinta, a costumeira mansidão de boi transformada em fúria de leão. Dona Guilhermina, vizinha do casal, respeitada pelos dotes de benzedeira, persignando-se, bradava para quem se dispusesse a ouvi-la seu refrão predileto: “O mundo tá perdido! De mil passou, mas a dois mil não chegará!” Descobriu-se, adiante, com a providencial mediação do pároco, que a história da ligação do farmacêutico com o incidente tava mal contada. Os preservativos haviam sido largados, isso sim, num terreno baldio perto da farmácia. O pai injuriado foi dissuadido de tomar satisfação. Mas, por via das dúvidas, o farmacêutico saiu de fininho de circulação. Arranjou viagem súbita a Sacramento para visita a parentes.
Isso aí, gente boa! Não há como deixar de classificar de hilário o confronto dessas lembranças da meninice com os reclames institucionais do momento carnavalesco que passou e do de outros carnavais recentes. É o caso de mencionar, por exemplo, aquela cena mostrada na televisão de um preservativo ajustado a robusto recipiente de suco de uva. Vale citar, também, as prédicas solenes, em tom didático, de respeitados médicos infectologistas aconselhando zelosos pais e mães a orientarem prudentemente filhos e filhas a não se esquecerem, ao sair de casa, antes de cair na “gandaia momesca”, de levarem nos bolsos os indispensáveis apetrechos, mode quê se protegerem de indesejáveis contratempos. Tudo isso revela, de modo impecável, como são desconcertantes e inesperados os rumos da vida no trepidante capítulo do comportamento e costumes. Quem não estiver mental e psicologicamente preparado, em tempos de agora, para “surpresas”, acaba dando uma de dona Gertrudes. Tem um troço…
Por derradeiro: ponho-me a imaginar a gargalhada estardalhante que a relembrança da espoletice praticada nos tempos da infância é capaz de arrancar hoje da garganta do dr. Candinho, rodeado de netos, na varanda de seu aprazível sítio em Maringá.
- Jornalista ([email protected])
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