Economia

Consumo de passagem: como o transporte coletivo movimenta o comércio em BH

Série de reportagens mostra como os comércios de rua se formam ao redor de estruturas de mobilidade e como a cidade se transforma com o vai e vem de moradores e passageiros
Consumo de passagem: como o transporte coletivo movimenta o comércio em BH
Ponto de ônibus em BH | Foto: Diário do Comércio/ Giulia Simmons

São cinco horas da manhã e o casal Eduardo, 54, e Ana Paula Magalhães, 53, já está com o café quentinho passado, broa de fubá, pão de queijo e outros salgados prontos para servir aos trabalhadores que descem ou esperam os ônibus perto do Shopping Del Rey, na região Noroeste de Belo Horizonte. Para isso, os empreendedores acordam às 3h nos dias úteis. O negócio de carrinho de café da manhã começou há 17 anos como forma de complementar a renda do casal, que também possui uma gráfica. Foi esse incremento que ajudou Eduardo e Ana Paula a criarem os filhos, hoje com 18 e 14 anos.

Eduardo e Ana Paula
Ana Paula e Eduardo | Foto: Diário do Comércio/ Giulia Simmons

“O movimento é bom por causa do tempo que estamos aqui. O pessoal já conhece a gente, então isso fideliza a clientela. O melhor período de vendas é no começo do mês, quando o salário cai, e o pior é no fim do mês, quando o dinheiro acaba. Com isso, sabemos também quando temos que trazer mais lanches e quando devemos trazer menos”, detalha Eduardo.

O horário e a localização do ponto de café são estratégicos. O carrinho fica ao lado de um ponto de ônibus e em frente a outro, além de haver outros pontos de parada bem perto dali. A partir das 5h, os ônibus de Belo Horizonte aumentam a frequência para atender aos trabalhadores que saem cedo para trabalhar. E são muitos. Os banquinhos colocados ao redor do carrinho de Eduardo e Ana Paula dificilmente ficam vazios. O consumo é rápido, já que todo mundo tem horário para bater o ponto. Mas, frequentemente, gera vínculos permanentes.

O carrinho de Ana Paula e Eduardo
Foto: Diário do Comércio/ Giulia Simmons

“O público é diverso e sempre trabalhador. Tem de tudo: funcionário de empresa, faxineira, empregada doméstica, trabalhador de obra. Tem gente que para o carro aqui para pegar o lanche, tem motorista de ônibus que a gente já sabe o que quer e leva o cafezinho dele, tem caminhoneiro que estaciona o caminhão ali e vem tomar café da manhã. E tem muita gente que fica amiga. Essa senhora que estava aqui mesmo vem desde que começamos. Tem cliente que vem todo dia, e a gente faz até resenha”, conta Ana Paula.

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carrinho de lanches
Foto: Arquivo pessoal/ Ana Paula Magalhães

O negócio de café da manhã fecha às 9h, já que, a partir desse horário, o público-alvo diminui consideravelmente. Mas, no turno da tarde, a segunda jornada de Eduardo e Ana Paula começa, com o trabalho na gráfica.

Como eles, existem pelo menos 2.254 pequenos negócios voltados para serviços de ambulantes no setor de alimentação em Belo Horizonte, segundo dados do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).

Transporte coletivo atrai comércio e valoriza o entorno

Implementar um negócio em um ponto com grande fluxo de pessoas é estratégico e, geralmente, eficiente. Para se ter uma ideia, só os ônibus da capital mineira transportam quase 1 milhão de pessoas por dia. Somados, todos os pontos de ônibus passam de 9 mil. Enquanto isso, a rodoviária de BH recebe, também diariamente, 20 mil pessoas. Por lá, há 61 comércios instalados.

No metrô de BH, são transportados 100 mil passageiros todos os dias. Atualmente, o sistema conta com 19 pontos comerciais nas estações, e, em breve, esse número deve aumentar. Conforme anunciado nesta semana, as novas estações do metrô, incluindo duas da Linha 2, uma promessa de estender o sistema até o Barreiro, já devem começar a ser implementadas no ano que vem.

Metrô BH
Foto: Charles Silva Duarte/Arquivo Diário do Comércio

E é em torno dessa transformação que o comércio vai se formando. Mais do que estratégico, portanto, o fenômeno é histórico. É o que explica o professor do Departamento de Transportes da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Dimas Alberto Gazolla, especialista em planejamento de sistemas de transportes urbanos, transportes ativos e impactos ambientais de transportes.

“Em ambiente urbano, quando é implantado qualquer tipo de oferta de transporte, há uma mudança no valor da terra (valorização ou desvalorização do metro quadrado do terreno ou imóvel) na área de influência direta e indireta da oferta de transporte, que, por sua vez, promove mudança no uso e na ocupação do solo no entorno”, diz.

“Ao implantar, por exemplo, linhas de trens ou ônibus e estruturas como um ponto, um terminal/estação, um viaduto, uma rotatória ou uma travessia sinalizada, após aproximadamente três anos e meio, vai haver uma mudança parcial ou total do uso e ocupação do solo no entorno. Essas mudanças, em geral, se dão no sentido de valorizar o metro quadrado do terreno ou do imóvel para instalação de atividades comerciais e serviços”, completa.

Ponto de ônibus em Belo Horizonte
Foto: Diário do Comércio/ Giulia Simmons

Em Belo Horizonte, é possível visualizar isso em locais urbanos onde foram implantadas ofertas de transporte, principalmente nos pontos comuns de embarque, desembarque e de passagem, como estações e terminais, onde surgiram comércios de ambulantes e de pequeno e médio porte, e até mesmo o desenvolvimento de polos comerciais.

Há casos, inclusive, de apogeu e decadência desse fenômeno ao longo dos anos, “como na concentração de pontos finais de ônibus nas avenidas Amazonas, Paraná, Santos Dumont e Olegário Maciel. E, atualmente, na Praça da Estação, Oiapoque, Horto, Eldorado, Diamante, São Gabriel, Venda Nova, entre outros”, exemplifica o professor.

Oriundo de tempos ainda mais remotos, o fenômeno de formação de comércio ao redor de pontos de passagem pode ser observado desde a década de 1920, quando o trem chegou em Belo Horizonte. Inaugurada em 1922, a Estação Ferroviária de Belo Horizonte foi o principal meio de transporte na época, facilitando o escoamento de mercadorias e a conexão entre os centros urbanos e o interior de Minas.

“Sempre houve espaço para atividades de comércio ambulante formal e informal nos sistemas sobre trilhos, capazes de absorver as pessoas em situação de vulnerabilidade”, completa Gazolla.

Cidade de 15 minutos como projeto de futuro

Ainda que o fomento ao comércio ocorra com pujança em locais de grande fluxo de pessoas, isso ainda fica muito centralizado em determinados pontos de Belo Horizonte. O professor Dimas Gazolla acredita que é possível pensar um modelo que fomente ainda mais a relação das pessoas com o espaço urbano em todas as regiões, e não somente em um ponto da cidade.

Para ele, as mudanças na lógica de ocupação desses espaços com o avanço da mobilidade por aplicativo, do Move e das ciclovias, por exemplo, ainda são muito tímidas.

“A lógica dos projetos para os sistemas de transportes hoje praticada para Belo Horizonte e região metropolitana (RMBH) está equivocada e inadequada, pensando a cidade para o futuro. Torna-se urgente e necessário aplicar, com técnica, a relação transporte x espacialidade, para a mudança da concepção na elaboração dos projetos dos sistemas de transportes. Isso visa à descentralização das atividades no espaço urbano de BH e RMBH, com real redução das distâncias médias de deslocamento da população entre origem e destino das suas viagens rotineiras, como casa-trabalho, casa-estudo, casa-compras, casa-saúde. A reestruturação da infraestrutura urbana e de transportes pode possibilitar, no futuro próximo, a realização da cidade de 15 minutos”, explica.

Esse conceito se refere a um tipo de planejamento urbano que permite que a maioria das necessidades rotineiras da população como trabalho, compras e serviços de saúde, possa ser atendida em um raio de 15 minutos a pé ou de bicicleta a partir da casa dos moradores.

Consumo imediato e estratégico: o comércio no meio do caminho

E por falar em 15 minutos, por mais rápida que seja uma entrega via e-commerce, ela nunca será tão ágil como uma venda in loco, dependendo da necessidade da pessoa. Não é que esse tipo de comércio não concorra com o digital, conforme explica o presidente da Câmara dos Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (CDL/BH), Marcelo de Souza e Silva. Até porque a pessoa que está ali no ponto de ônibus também pode entrar na internet e comprar um produto, que irá receber em casa posteriormente. Mas, para o consumo imediato e, principalmente, por necessidade, os negócios instalados no meio do caminho são uma praticidade, principalmente, se pensados com estratégia.

“Culturalmente, a gente tem isso. Onde há essa passagem e fluxo de pessoas, há a venda e o consumo por necessidade e também por impulso. A pessoa passa ali e lembra que está precisando de algo, de uma capinha para o celular, por exemplo, ou está com fome e entra numa lanchonete para comer. E o consumidor belo-horizontino, especialmente, gosta muito de pegar no produto, ver a cor, conferir se ele é daquele jeito mesmo”, diz.

Como forma de potencializar ainda mais esses negócios, Souza e Silva lembra que o comerciante tem que se atentar ao que o passante precisa.

“É importante olhar a necessidade do consumidor, que tem que fazer a sua compra de forma mais ágil nessas situações. Investir em pequenos acessórios, presentes, flores, alimentação, algo que o cliente possa passar, comprar e ir embora, sem experimentar, é uma boa ideia. Lembrando que o vendedor tem que ser ágil também, com formas de pagamento rápido. A minha dica é: modernize o seu negócio e facilite a vida do consumidor”, conclui.

Carrinho de lanches
Foto: Diário do Comércio/ Giulia Simmons

Essa reportagem é a primeira de uma série de três matérias.

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