Economia

Canos entre pedras centenárias: o desafio de levar saneamento às cidades históricas de Minas

Entre ruínas, calçamentos de pedra e relíquias arqueológicas, obras de água e esgoto avançam em cidades históricas mineiras com tecnologia, planejamento e cuidado com a memória
Canos entre pedras centenárias: o desafio de levar saneamento às cidades históricas de Minas
Foto: Divulgação / Saneouro

Garantir água potável, coleta e tratamento de esgoto em cidades históricas de Minas Gerais, como Ouro Preto e Diamantina, vai muito além da engenharia. Por trás das obras de saneamento existe uma operação delicada que combina tecnologia, arqueologia e preservação do patrimônio cultural mineiro.

Entre pedras do século XVIII e ruínas arqueológicas, concessionárias como a Copasa e a Saneouro investem milhões para cumprir as metas de universalização previstas no Novo Marco Legal do Saneamento.

O caminho é construído, literalmente, pedra por pedra. Cada metro escavado pode revelar vestígios do passado e, ao mesmo tempo, abrir espaço para um futuro com mais qualidade de vida.

Diamantina: engenharia de precisão em solo rochoso e histórico

Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, destaca-se como laboratório de boas práticas em saneamento em áreas tombadas. Reconhecida pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, a cidade exige que cada intervenção passe por avaliação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e acompanhamento de arqueólogos.

Desde 2021, a Copasa investiu R$ 8,8 milhões em duas etapas de obras, beneficiando 27 mil moradores. A terceira fase, em andamento, conta com R$ 14,4 milhões para ampliar a rede de esgoto em 11 bairros e impulsionar o emprego e a saúde pública.

Obra da Copasa em Diamantina
Foto: Divulgação / Copasa

“Diamantina tem particularidades únicas. O solo é praticamente rochoso, o que torna qualquer obra muito mais complexa. Além disso, cada pedra retirada precisa ser recolocada no mesmo lugar e no mesmo ângulo. É um trabalho de formiguinha”, explica o gerente de Expansão Norte e Leste da Copasa, Raul César Ferreira Durães.

Segundo ele, durante as escavações, já foram encontrados fragmentos de cerâmica do século XIX, ferraduras e até peças de armas brancas. Essas descobertas podem atrasar as obras por meses, já que precisam ser catalogadas e enviadas a instituições credenciadas.

Pedaços de objetos encontrados em obras da Copasa em cidades históricas
Pedaços de objetos encontrados em obras da Copasa em cidades históricas Foto: Divulgação / Copasa

“Para liberar a segunda fase, ficamos mais de um ano aguardando uma instituição credenciada pelo Iphan para receber o material coletado”, conta Durães.

Resultados já aparecem em Diamantina

As dificuldades também se estendem à rotina das equipes. “O Iphan já questionou até a diferença entre o rejunte novo e o antigo. É claro que vai estar diferente, porque um é novo e o outro é centenário. Mas seguimos sempre a orientação de preservar ao máximo”, destaca o gerente regional da Copasa em Diamantina, Vilson José de Amorim. 

Obra da Copasa em Diamantina
Foto: Divulgação / Copasa

Apesar dos obstáculos, os resultados são concretos. Só na primeira fase da troca de redes de água, com mais de 4,6 km substituídos, os vazamentos caíram 50%, melhorando a pressão e a qualidade do abastecimento para 34 mil pessoas. A tubulação antiga, com mais de 100 anos, estava tão incrustada que permitia a passagem de menos da metade do fluxo original.

“A gente tenta manter as origens em tudo, principalmente no pavimento. É um desafio diário, mas essencial para preservar a cidade e garantir qualidade de vida à população”, completa Amorim.

Ouro Preto: desafios para universalizar o saneamento sem ferir a história

Considerada uma das cidades históricas mais importantes do País, Ouro Preto, na região Central de Minas, enfrenta o desafio de equilibrar turismo, conservação e infraestrutura básica. Desde 2020, a Saneouro é responsável pelos serviços de água e esgoto no município e em seus 12 distritos.

Com R$ 71 milhões investidos entre 2020 e 2024, a empresa reformou e implantou 61 quilômetros (km) de redes de água e quase 8 km de esgoto, beneficiando mais de 66 mil moradores e gerando 150 empregos diretos.

Preservação em cada etapa

O superintendente da Saneouro, Evaristo Bellini, explica que as obras em ruas de pedra são realizadas, muitas vezes, de forma manual, já que a vibração de máquinas pode comprometer a estrutura de casarões centenários. Em bairros turísticos, como Lavras Novas, os serviços são suspensos nos fins de semana para não interferir no fluxo de visitantes.

“No início, a cidade não era hidrometrada. Tivemos de instalar hidrômetros em praticamente todos os imóveis e treinar a equipe para atuar em área tombada. Foi necessário até um curso específico para o trabalho com pedras antigas”, explica Bellini.

A empresa estuda utilizar os chamados “tatuzinhos”, microtúneis escavados por máquinas que reduzem o impacto das intervenções. Em regiões de tráfego intenso, como o centro histórico, parte das obras é executada à noite.

“Isso faz com que a obra leve mais tempo e tenha custo maior, mas é um cuidado necessário para preservar o Centro Histórico”, diz Bellini.

Todas as intervenções precisam ser autorizadas pelo Iphan, e arqueólogos acompanham as escavações. “Somos obrigados a contratar um arqueólogo para acompanhar as obras. Caso seja encontrada alguma peça histórica, o profissional registra e adota as providências legais”, relata Bellini. Em uma das escavações, a equipe encontrou um pires antigo. “Não estava inteiro, mas foi devidamente catalogado e entregue ao município”, relembra.

Avanços e próximos passos

Em agosto de 2025, foi inaugurada a Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) Parque da Lagoa, em Cachoeira do Campo, distrito de Ouro Preto. O índice de esgoto tratado passou de 0,67% para 2,69%, e a meta é universalizar o serviço até 2033.

Estão em andamento as obras da nova ETE Osso de Boi, com conclusão da primeira fase prevista para julho de 2026. Para lidar com a complexidade de atuar em um município tombado, a Saneouro capacitou sua equipe com cursos específicos de intervenção em áreas históricas.

“Não adianta concluir uma obra se for para comprometer todo o trabalho. Esse não é o nosso jeito de atuar”, reforça Bellini.

Santa Luzia: esgoto tratado e ampliação da cobertura

A Copasa está ampliando os investimentos em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, com obras que reforçam o sistema de esgoto e modernizam as redes de água, inclusive no Centro Histórico tombado. O objetivo é garantir mais qualidade de vida à população e preservar o patrimônio cultural da cidade, um dos mais importantes de Minas Gerais.

Segundo o gerente da Região Metropolitana Leste da Copasa, Carlos Tadeu da Cruz, o equilíbrio entre modernização e preservação exige tecnologia e planejamento. “A Copasa executa suas obras em áreas históricas com o máximo de cuidado técnico e respeito ao patrimônio cultural e à dinâmica urbana local”, afirmou.

Com R$ 12 milhões investidos, a nova Estação de Tratamento de Esgoto Bom Destino vai beneficiar 6 mil moradores. Bairros como Pinhões e Bonanza recebem outras obras de mesmo valor.

Obra de saneamento da Copasa em cidades históricas de Minas
Foto: Divulgação / Copasa

Com investimento de aproximadamente R$ 300 mil, a Copasa vai substituir 600 metros de tubulações antigas por materiais mais resistentes no Centro Histórico de Santa Luzia. A obra depende da autorização final do Iphan e deve começar em dezembro deste ano, beneficiando 55 ligações.

Segundo Cruz, esse cuidado é essencial: “Os benefícios da substituição dessas redes serão significativos, pois evitarão a ocorrência de vazamentos que poderiam comprometer um imóvel tombado”.

Congonhas: patrimônio e saúde pública lado a lado

Em Congonhas, na região Central do Estado, cidade que abriga o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, a Copasa investe R$ 31 milhões na ampliação do sistema de esgotamento sanitário.

Serão implantados 18 quilômetros de redes, essenciais para proteger um dos patrimônios mais visitados de Minas. A iniciativa também melhora a saúde pública e impulsiona o turismo, uma das principais fontes de renda do município.

Paracatu: investimentos pesados e segurança hídrica

A Copasa mantém em Paracatu, no Noroeste de Minas, um cenário avançado de saneamento básico, com coleta e tratamento de esgoto já universalizados. Diferentemente de outras cidades históricas do Estado, como Ouro Preto e Diamantina, o município não registra grandes obras recentes no Centro Histórico, mas segue protocolos rigorosos para preservar o patrimônio durante eventuais manutenções.

Segundo o gerente de Expansão Centro-Oeste da Copasa, Fabrício Rezende, embora não haja registros de grandes obras no Centro Histórico de Paracatu desde 2009, a companhia realiza manutenções ocasionais, sempre com as adaptações técnicas necessárias.

“Paracatu está bem mais avançada em comparação a outras cidades históricas, com saneamento universalizado. A infraestrutura atual atende adequadamente à população”, afirma.

Obra de saneamento da Copasa em cidades históricas de Minas
Foto: Divulgação / Copasa

Nesses casos, a empresa utiliza equipamentos de menor porte, que reduzem o impacto sobre imóveis antigos e ruas estreitas, ainda que o serviço seja mais demorado. “O uso desses equipamentos é necessário para não comprometer o terreno, já que muitas casas no entorno são frágeis. O processo não é tão rápido, mas é uma consequência do cuidado que precisa ser adotado”, explica o gerente.

Na cidade, a Copasa já investiu mais de R$ 200 milhões desde 1979. Uma das obras mais importantes é o Reservatório de Acumulação (piscinão), que garante abastecimento por até 60 dias em caso de estiagem.

Outros avanços incluem a bateria de poços Chapadinha, que ampliou em 35% a oferta de água, e uma unidade de tratamento de resíduos, que recebeu investimento de R$ 5,5 milhões.

Burocracia, patrimônio e futuro

As obras de saneamento em cidades históricas de Minas só avançam com o aval do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão vinculado ao Ministério da Cultura. Cabe ao Iphan autorizar e fiscalizar todas as intervenções em imóveis e áreas tombadas em nível federal, além de atuar em parceria com estados e municípios para assegurar a preservação do patrimônio cultural.

“Entendo que toda a comunidade é responsável pela preservação dos bens tombados, incluindo as concessionárias”, afirma a arquiteta e diretora da Escola de Arquitetura da UFMG, Vanessa Brasileiro.

Outro ponto fundamental é a análise do potencial arqueológico da área. Se a obra estiver localizada em um perímetro tombado ou registrado como patrimônio cultural em âmbito federal, estadual ou municipal, a realização de pesquisa arqueológica é obrigatória, já que nessas regiões há maior probabilidade de serem encontrados vestígios históricos ainda desconhecidos.

O órgão explica que diferencia intervenções emergenciais e de pequeno porte daquelas de maior impacto, como escavações profundas em centros históricos, exigindo níveis distintos de controle e documentação. Para apoiar esse processo, o Iphan utiliza cartas de potencial arqueológico — estudos que identificam as áreas mais sensíveis e orientam as decisões técnicas.

Durante a execução das obras, o monitoramento arqueológico é realizado por profissionais habilitados e acompanhado pelas superintendências do Iphan. Mesmo em situações emergenciais, há protocolos mínimos a serem seguidos para evitar a perda de patrimônio histórico.

Segundo o instituto, os maiores riscos em obras subterrâneas são danos irreversíveis a sítios arqueológicos ainda não identificados e alterações no solo que possam comprometer estruturas antigas. Por isso, o Iphan mantém regras claras para que qualquer achado seja imediatamente registrado e para que os trabalhos só prossigam após a devida documentação.

Apesar dos entraves, os resultados comprovam a importância dos investimentos. Em muitos casos, redes centenárias estão sendo substituídas por sistemas modernos que melhoram o abastecimento, reduzem perdas e protegem a história.

Entre solo rochoso, ruas estreitas e relíquias enterradas, o futuro do saneamento em cidades históricas de Minas está sendo construído com respeito ao passado e atenção ao amanhã. O desafio é conciliar tradição e progresso, e as concessionárias mostram que, mesmo de forma gradual, é possível avançar.

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