Economia do desapego: brechós fomentam consumo sustentável e renda para mulheres

O mercado de brechós está a todo vapor em Minas Gerais. O movimento que ganhou força na pandemia emerge como uma alternativa de consumo sustentável e fonte de renda para mulheres, mas também como uma forma de fazer a moda circular com menos impacto para a natureza.
Para se ter uma ideia, a indústria da moda é responsável por 4% das emissões de carbono no mundo, segundo a Global Fashion Agenda, organização global sem fins lucrativos que estuda os impactos da indústria da moda para fomentar a sustentabilidade no setor.
Outro dado alarmante do estudo informa que 35% da poluição por microplásticos nos oceanos vem das fibras sintéticas, principais insumos na produção de tecidos. Além disso, 80% de todas as roupas descartadas no mundo vão para aterros ou são incineradas.

O Relatório Setorial da Indústria Têxtil de 2024, estudo encomendado pela Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), revela que, só em 2023, o Brasil produziu 2 milhões de toneladas de novas roupas.
Após serem descartadas, muitas dessas peças ainda permanecerão no planeta por pelo menos mais um século, como no caso das roupas feitas com poliéster (um material sintético derivado do petróleo, ou seja, plástico).
Outra alternativa para o descarte seria prolongar o tempo de vida útil dessas peças justamente as mantendo em circulação. E é aí que entra o mercado da moda circular.
Enquanto boa parte dos descartes da indústria têxtil, que está em pleno crescimento, acrescentam mais volume à poluição do planeta, uma rede de mulheres se dedica a resgatar e encontrar novos destinos para peças usadas. Para muitas delas, essa atividade é a principal fonte de sustento da família.
Prática do desapego é herança da pandemia
Minas Gerais tem brechós para todos os gostos. Lojas on-line, lojas físicas, profissionais autônomos, franquias e produtos diversos. Segundo dados da Receita Federal, o Estado conta com 2.650 pequenos negócios neste ramo, sendo 2.141 (80%) MEIs, 467 microempresas e 42 empresas de pequeno porte.
O Sebrae Minas realizou o primeiro estudo sobre o setor no ano passado para conhecer o perfil do empreendedor que atua nessa área. A analista da unidade de Indústria, Comércio e Serviços (UICS) da entidade, Karina Hanum, explica que, inicialmente, as pessoas – em sua maioria, mulheres – começam a desapegar das próprias roupas e acabam encontrando nisso uma oportunidade de negócio.
“Elas começam em casa, de forma despretensiosa, sem pensar que encontrariam nessa atividade uma primeira fonte de renda, mas acaba dando certo. O público é majoritariamente feminino. Mulheres consomem e enjoam mais das roupas, não usam as peças até acabarem. Esse comportamento de desapego é um pouco herança da pandemia, quando as pessoas estavam confinadas em casa e viam o armário cheio, sabendo que não iriam usar tudo aquilo. Em contrapartida, também acabavam comprando mais peças de segunda mão”, explica.
Colocar as próprias peças à venda no período de restrições sanitárias foi também uma forma de complementar a renda em um cenário econômico incerto. Mas muitos negócios desse tipo acabaram dando certo, e a circulação de peças de segunda mão se tornou a principal fonte de renda para muitas mulheres, que prosperam em seus negócios.
Resiliência on-line
A pesquisa do Sebrae ainda indica que 52% dos donos de brechós em Minas Gerais estão neste ramo há mais de três anos, enquanto 31% trabalham com isso de um a três anos. Somente 16% estão na área há menos de um ano.
Há, ainda, uma parcela (13%) do setor que se mantém com a economia do desapego há mais de oito anos. Uma delas é a publicitária Giovanna Alckmin, dona do Box Moda Circular, um brechó on-line de Belo Horizonte que comercializa para todo o Brasil.
Ela começou a empreender no ramo em 2012, ainda na faculdade, quando prestava serviços para algumas marcas e, muitas vezes, “recebia” em produtos, como calçados. O excedente dessas peças e itens do próprio guarda-roupa eram postados para vendas no Instagram.

A partir daí, Giovanna começou a organizar feiras de brechós reunindo diversos expositores e variados estilos, mas o negócio foi interrompido pela pandemia. O jeito foi voltar para o Instagram e centralizar na plataforma o seu negócio. Era também o momento em que ela vivia o fim da sua primeira gestação.
“Quando realmente abri o brechó on-line na pandemia, eu estava grávida de 9 meses, então foi acontecendo tudo ao mesmo tempo. O brechó deu um ‘boom‘ muito grande na pandemia para negócios on-line. Com as pessoas em casa, as lives de vendas eram também um entretenimento”, lembra.
Vendas ao vivo geram engajamento e comunidade
As lives que Giovanna Alkimim cita são transmissões em tempo real para apresentação das peças disponíveis e concretização de vendas. Uma forma de manter o negócio on-line sem abrir mão do atendimento personalizado.
“As lives engajam muito nas vendas e também na diversão. A gente não apresenta simplesmente a peça e informa o preço. Eu conto como a peça pode ser usada, como é a textura, o tecido. Dou dicas de uso e combinações, sugestões do tamanho, orientações. Isso faz com que minhas clientes tenham mais segurança em adquirir o produto on-line“, explica.
Enquanto isso, nos comentários, quem anuncia o desejo por determinada peça leva primeiro.
“Isso gera uma competitividade boa. Quando você vê outra pessoa comprando, você também quer comprar, além de saber que é uma oportunidade adquirir aquela peça, que é única. E a gente vai conversando ao longo das lives, as clientes tiram dúvidas nos comentários, interagem entre si, e isso cria uma comunidade”, completa.
As lives do Box Moda Circular costumam ser movimentadas, algumas vezes, atingindo um pico flutuante de 1.000 pessoas. De 2022 para 2023 o faturamento dobrou. De 2023 para 2024, os rendimentos também aumentaram.
Somente no mês de dezembro de 2023, Giovanna viu novamente o faturamento dobrar. Ela acredita que isso se deve ao período de Natal, mas também a novas aquisições que fez para o seu estoque.

Além de comprar peças de desapegos individuais, muitas vezes, das próprias clientes, ela também adquire coleções de lojas que vendem roupas de marcas, portanto, peças novas.
“Algumas lojas vendem seus estoques para trocar a coleção e, ao invés de queimarem essas peças com liquidações, elas vendem pra gente que trabalha com brechós. Com isso, comprei muitas roupas de marcas que são desejos de nossas clientes. Teve um tipo de vestido que veio nessas aquisições e que, só de novembro pra cá, eu já vendi 600 unidades”, explica.
Crescimento do negócio e da família
Durante esses anos, as clientes do brechó Box Moda Circular acompanharam as três gestações de Giovanna nas lives. Hoje, seus filhos têm 4 anos, 2 anos e 5 meses. É com o faturamento do brechó que ela mantém a casa e sustenta a família.
“Eu tenho o apoio do meu marido, que fica com as crianças enquanto eu trabalho. Ele tem um negócio secundário, mas hoje, o nosso negócio principal é o brechó. E como o meu espaço do estoque, onde eu faço as lives, é muito perto da minha casa, eu consigo ir lá com frequência, ver as crianças, ou elas vêm aqui. Além disso, sou uma mãe atípica, e é importante para mim estar perto da família. Então, essa foi a forma que consegui de conciliar a maternidade e trabalho”, conclui.
Resiliência na loja física
Fora das telas, outro negócio de moda circular que acompanha as mudanças do tempo – e do público – é o Brilhantina Brechó, localizado na Savassi há 22 anos. Especializado em moda vintage e atemporal, o negócio é conduzido por Raquel Fernandes Vieira desde 2003.
“Eu sempre estive nesse mundo da moda porque minha mãe é costureira. Sempre gostei de coisa mais antiga, tecidos e modelagem vintage. Na época, existia uma lojinha dessas que vendem ‘tudo’, onde eram exibidas algumas roupas que vinham dos Estados Unidos. E eu encontrava muita coisa antiga ali, vestidos, tricôs, que eu fui adquirindo. Quando cheguei a um estoque bacana em casa, decidi montar um brechó nesse estilo mais vintage, e foi minha mãe que cantou o nome: Brilhantina”, lembra.

A loja passou por alguns endereços diferentes, sempre na mesma região, após o início em uma galeria.
“O público ali na galeria era interessante, uma galera que entendia de moda e dessas coisas vintage. E como eu estava inserida no curso de estilismo e das Belas Artes, também trazia esse pessoal, mas era um público bem pequeno e nichado. Aí decidi mudar pra uma loja de rua, até porque BH não tem essa tradição de desbravar galerias, como vemos no Rio e em São Paulo. A partir de então, o público começou a aumentar, mas as pessoas ainda tinham em mente que brechó é roupa velha ou fantasia”, diz.
Hoje, o público é diverso. Circulam pela loja jovens que amam peças vintage e também aqueles que gostam de coisas super modernas, adultos que gostam de brechós por causa do custo-benefício e senhoras que sabem valorizar boas peças. Estas, inclusive, são as melhores fornecedoras para o Brilhantina, segundo Raquel. “São senhoras dessa região que viajaram muito na vida, e agora estão mais sossegadas, e vendem suas peças antigas”, conta.
Atendimento personalizado
A maioria (57%) desses negócios em Minas, segundo a pesquisa do Sebrae, mantêm, concomitantemente, lojas físicas e on-line. Enquanto isso, 22% dos empreendedores optam apenas pelas vendas na internet, e a mesma porcentagem, pelas lojas físicas. É neste último caso que se insere o Brilhantina.
“Eu gosto do físico, do cara a cara, amo trabalhar com o público. Eu gosto de pegar no tecido, mostrar a peça inteira, o acabamento. Sou realmente apaixonada por roupa. E gosto de conhecer a pessoa, fazer uma ‘consultoria’, entender o seu estilo, o que ela coloca no armário. Algo que o on-line não me permite com a mesma intensidade”, explica a empreendedora.

Consumo de segunda mão é tendência para o futuro
Criadora de conteúdo no segmento de beleza, Karla Lopes costuma publicar vídeos em que “desbrava” bazares em Belo Horizonte atrás de boas peças. Seus preferidos para isso são os bazares de igreja.

“A minha ideia com os vídeos é realmente incentivar as pessoas a olharem para fora da caixa, além das tendências e das vitrines do shopping. Eu sempre fico de olho nesses bazares de igreja e de instituições filantrópicas, que são ótimos para achar boas peças. Principalmente aquelas mais vintage, com mais de 40 anos, porque você vê o capricho com que as roupas eram feitas, a qualidade dos tecidos. Comprar em bazar ajuda a treinar o olhar e entender o próprio estilo”, diz.
A dona do Brilhantina, Raquel Vieira, endossa: “Antigamente, antes das fast fashions, as pessoas tinham menos coisas e, portanto, mais zelo com suas peças. Hoje em dia, temos muitas roupas, o armário cheio, devido a essa facilidade de consumir vestuário. Naquela época as peças eram mais bem feitas e duravam, especialmente as das décadas de 50 a 70″.
“Percebo também que o respeito com o consumidor ali era altíssimo. Você comprava uma peça inteira bordada que está boa até os dias de hoje. Esse tipo de peça feita atualmente não dura muito, ainda mais colocando na máquina de lavar: os bordados já vão se desfazendo e caindo as miçangas”, completa.

A dona do Box Moda Circular, Giovanna Alkmim, entende que havia um tipo de “senso comum” sobre peças de segunda mão. “Mas quando as pessoas veem o trabalho que há por trás na curadoria dessas peças, no cuidado, percebem que não é a mesma coisa de antes. Não vendemos qualquer coisa só por ser um brechó. Inclusive, a peça que está na loja, muitas vezes, é a mesma que vendemos aqui, mas por um preço de 20% a 90% mais barato”.
“Hoje, a moda é linear. Ou seja, você compra, usa e descarta. A moda circular é justamente fazer esse processo durar mais até o descarte. Então, a gente dá uma chance de vida maior para a peça a um preço melhor. Até porque a pessoa descarta uma peça não porque ela está inutilizável. É porque depois que compra, ela descobre que não gostou, percebe que não serviu bem, que ela mudou, que aquela roupa não é mais a cara dela. A gente muda muito o nosso estilo ao longo da vida, e o que não te serve mais, pode ser a cara de outra pessoa agora”, explica.
Esse tipo de consumo é um caminho sem volta. Há uma tendência de crescimento neste setor, conforme explica a analista do Sebrae, Karina Hanum.
“É verdade: a tendência é crescer mesmo. Fizemos esse primeiro estudo do setor no ano passado porque começamos a ver aqui em Minas um movimento de circularidade, um polo produtivo amadurecendo“.
Ela acredita que essa tendência deve expandir também para outras formas de negócios como as franquias. O Joaninha Brechó Infantil ou o Peça Rara Brechó são alguns exemplos deste formato.
“E a gente não encontra mais só peças baratas, de bazar. Há essa tendência também para mercado de peças de luxo de segunda mão, de alto valor agregado. E também vamos presenciar surgindo, cada vez mais, brechós de outras coisas além de vestuário, como de itens de cozinha, utensílios doméstico e móveis, por exemplo”, conclui.
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