Economia

Empreendedorismo indígena: entre a aldeia e a cidade, povos originários buscam autonomia

Série de reportagens sobre economia e empreendedorismo indígena aborda desafios, conquistas e soluções dos povos originários para um mundo melhor; confira a primeira matéria da série
Atualizado em 8 de junho de 2025 • 22:04
Empreendedorismo indígena: entre a aldeia e a cidade, povos originários buscam autonomia
Da esquerda para a direita: Avelin Kambiwá / Foto: Giulia Simmons| Silvia Uchoa/ Arquivo Pessoal | Luzenira Tapirapé/ Arquivo Pessoal| Daru Tikuna/ Foto: Juliana Baeta

No piso três do Mercado Novo, em Belo Horizonte, uma loja de artesanato atrai visitantes e turistas a todo o tempo, mantendo um bom fluxo de negócios no local, especialmente nos dias de mais movimento. Perto dali, também no Centro da capital mineira, uma artesã peruana colore o chão da avenida Afonso Pena com motivos andinos, sempre aos domingos. Já bem longe desses dois pontos de venda, mais precisamente a 1.750 quilômetros de distância, outra artesã produz peças originais no lugar onde vive: a floresta. E vende pela internet para todo o Brasil

Esses três negócios são conduzidos por empreendedoras indígenas que, embora se distingam em cultura e território, compartilham um conhecimento ancestral: a lida com a Terra. Sem machucá-la, aprenderam a gerar renda com ela.

Mas a relação dos povos indígenas com o trabalho nem sempre foi assim. Tampouco uniforme. No Brasil, vivem – e resistem – cerca de 1,7 milhão de indígenas autodeclarados de 305 etnias distintas, segundo dados do Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a última contagem realizada sobre essa população. Essa massa originária representa 0,83% da população total do País, e cada um desses povos tem hábitos, cultura e visão particulares de mundo. 

Passados mais de quinhentos anos desde que os portugueses pisaram pela primeira vez no Brasil, boa parte dessa população foi empurrada para o capitalismo, o sistema vigente, como forma de sobrevivência. O acesso à educação financeira, autonomia e direitos básicos para tanto, porém, ficou a desejar. 

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Quem explica é a socióloga e mestre em estudos da ocupação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Avelin Kambiwá, fundadora do Comitê Indígena Mineiro e idealizadora da Expo Abya Yala, primeira feira indígena de Belo Horizonte.

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“A gente teve que estar nesse mundo. Não foi uma escolha. E, agora, precisamos entender como ele funciona. Manter uma ideia romântica de quinhentos anos atrás, de que a gente não precisa de dinheiro e que não consome, é muito errado e nos leva às piores situações. Temos sido explorados justamente porque não tivemos acesso à autonomia, ao manejo do dinheiro. Entendemos que há diversos tipos de capital. Somos muito ricos, por exemplo, no capital espiritual e cultural, mas no financeiro não. E como não há jeito de fugir desse sistema capitalista, precisamos acessar esse recurso para ter autonomia”, diz.  

O entendimento sobre o indígena como um indivíduo dono de si mesmo, no entanto, é relativamente recente. Até a constituição de 1988, essa população era tutelada pelo Estado, ou seja, tinha seus interesses e bens geridos por pessoas não indígenas, por meio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), criada no regime militar. 

“Às vezes, a sensação que eu tenho é que eles [o homem branco] veem a gente como criança. Vamos receber o dinheiro do Fundo Amazônia, por exemplo, mas quem vai fazer a gestão do dinheiro é a empresa ‘tal’. Nunca os povos indígenas. E isso tem muito a ver com a ideia da tutela mesmo, vigente até 88. Eu tinha 8 anos nessa época, e lembro que se minha mãe precisasse entrar na Justiça, ela não podia. Precisava que uma pessoa não indígena entrasse no lugar dela”, relata. 

Confira a entrevista completa com Avelin Kambiwá:

Resgate da autonomia 

Uma pesquisa rápida em bancos de imagens fornece como resposta para “empreendedor de sucesso” um grande volume de homens brancos de terno e gravata. Há também mulheres brancas de terninho e camisa social. Poucos negros. Nenhum indígena. Talvez porque o imaginário coletivo credite a este termo altos cargos corporativos e pessoas de grande poder aquisitivo. Ideal de sucesso que diverge daquilo que um povo inteiramente ligado à natureza entende como riqueza.

Daru Tikuna na frente de sua loja no Mercado Novo
Daru Tikuna em sua loja de artesanato no Mercado Novo, em BH | Foto: Diário do Comércio/ Juliana Baeta

Mas a amazonense Daru Tikuna, de 42 anos, se entende como uma empreendedora de sucesso. É com a renda de seus negócios no Mercado Novo, reduto urbano e cultural de grande fluxo turístico no Centro da capital mineira, que ela sustenta a casa e suas duas filhas, de 8 e 12 anos.  Ali, ela tem uma loja de artesanato no terceiro piso, e um bar no primeiro, dedicado a pratos típicos de sua região. 

Tikuna: “homens pintados de preto”

“Eu sou das três fronteiras – Peru, Colômbia e Brasil, na Amazônia. O povo Tikuna existe nesses três países e é uma das maiores etnias da região amazônica. Tem uma língua única, isolada, e não tem raízes”, conta. 

Original de Campo Alegre, aldeia localizada no Alto Solimões, no Amazonas, Daru logo partiu para a aldeia Vendaval, em São Paulo de Olivença, no mesmo estado, onde foi criada e aprendeu artesanato. 

Floresta Amazônica
A floresta amazônica | Foto: Reprodução Adobe Stock

“Ali 70% da população é formada por pajés, porque as pessoas nessa comunidade iam passando o conhecimento da pajelança de geração em geração, então, a maioria sabe benzer e fazer curas espirituais. O artesanato também é passado da mãe para os filhos. A gente cresce sabendo fazer colares, pulseiras, artefatos”, complementa. 

Há 23 anos, Daru chegou a Belo Horizonte para estudar. Formou-se em Direito e Turismo e, mais tarde, começou também o curso de Artes Visuais, que pretende retomar. “No início, trabalhei aqui de carteira assinada em lanchonetes, choperias e restaurantes, e dia de domingo ia para a Feira Hippie [Feira de Artes, Artesanato e Produtores de Variedades de Belo Horizonte] vender artesanato”, lembra. 

Sua loja Dtikuna Arte existe há cerca de seis anos, e o Dtikuna Cultural Bar, há sete meses. A casa oferece comida típica amazônica, como a mujica, feita de banana verde, filé de peixe e temperos tradicionais, e bebidas alcoólicas à base de mandioca, fermentadas naturalmente, como o pajuaru e a caiçuma. 

A renda gerada com a loja de artesanato varia entre R$ 2 mil e R$ 5 mil, de acordo com o mês. “Tem períodos bons e períodos ruins. Este ano, por exemplo, caiu muito o movimento aqui no Mercado, por causa do tanto de feriado. As pessoas acabaram ‘fugindo’ da cidade. Mas a partir de quinta e nos finais de semana, dá para fazer boas vendas. O que sai mais são os cocares, as bolsas, máscaras, colares, brincos e maracá, que é uma espécie de chocalho”, diz.

Já com a renda do bar, empreendimento ainda recente, ela tira, em média, R$ 3 mil por mês. Somam-se, ainda, outros projetos que a empreendedora toca. “Dou aula na Arena de Cultura da cidade e também sou professora de arte e cultura, dando aula em escolas por contrato, além de aula de dança cultural. Também participo do projeto Jardim do Sagrado, como mestra dos saberes tradicionais, onde trabalhamos com cura através de ervas medicinais. Ainda pinto telas, faço roupas. E participo, eventualmente, do mandato da deputada federal por Minas Célia Xakriabá (Psol)”, lista. 

Xakriabá: “bom de remo”

Da aldeia para a internet

Em Confresa, no Mato Grosso, cidade com 35.075 habitantes, a terra indígena Urubu Branco abriga, na aldeia Tapi’itawa, o povo Tapirapé. Foi há cerca de sete anos que Luzenira Tapirapé, hoje, com 32 anos, começou a expor sua arte na internet. E a ganhar dinheiro com isso. Na aldeia, ela produz bijuterias diversas inspiradas por animais da floresta e grafismos. 

  • Tapi’itawa: “onde há muitas antas”
  • Tapirapé: “caminho de anta”

“Sou indígena da aldeia, não funcionária. A única coisa que ganho é com o artesanato. Gosto de trabalhar no atacado, porque faço um preço melhor, não gosto de colocar preço muito alto. Aí as pessoas podem comprar e revender. No varejo, vendo só às vezes, uma peça ou outra. Comecei a trabalhar e vender artesanato de miçangas e de penas em 2018, quando abri o Facebook, e depois veio o Instagram. Eu não tinha muito conhecimento, mas abri minha lojinha lá e fico vendendo. Envio para qualquer lugar do Brasil”, detalha.

Luzenira vai uma vez por semana à cidade para despachar as encomendas pelo correio. O contato com os clientes se dá pelas mensagens no Instagram, por onde ela encaminha o comprovante de envio da encomenda. A página conta com mais de 5.300 seguidores. Antes de abrir sua loja nas redes sociais, que batizou como Joia Indígena, Luzenira vendia artesanato de maneira analógica, na aldeia mesmo, para os não indígenas que passavam por lá. 

Luzenira Tapirapé posa com seus brincos
Luzenira apresenta algumas de suas peças | Foto: Arquivo pessoal

“Olha, hoje em dia, como indígena, a gente gosta de coisa de branco também. Na nossa aldeia temos a comida típica, que vem da natureza, e a gente planta na roça, mas, às vezes, cansa da comida tradicional. Nossos antepassados não eram assim, mas a gente muda a nossa realidade e como sobrevivemos na aldeia também. De vez em quando, gosto de comprar na cidade e comer arroz, feijão, frango, tomar Coca-Cola, suco. Não consigo um valor alto com as vendas. Essa renda serve para alimentar a minha família e comprar comida para meus filhos. E é isso”, explica. Ela é mãe de três crianças.

Intercâmbio de culturas

A artesã peruana Silvia Ochoa deixou sua cidade de origem, Arequipa, no Peru, rumo a Minas Gerais, há 15 anos, para passear. Já tinha uma filha na época, mas descobriu, na viagem, que estava grávida de outra menininha, que veio a nascer prematura, após menos de 6 meses de gestação. O tratamento rigoroso impediu mãe e filha de retornarem ao Peru, e ela acabou ficando por aqui. 

A família cresceu. Hoje, aos 49 anos, Silvia é mãe de quatro meninas e mora em Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Indígena do povo andino Quechua, é do artesanato que ela tira seu sustento. Em meio a artesãos indígenas brasileiros que ficam em frente ao Parque Municipal, na avenida Afonso Pena, aos domingos, Silvia apresenta pontos de cor entre tons de terra.

Silvia Uchoa na Feira Hippie
Silvia Uchoa atende cliente na Feira Hippie | Foto: Diário do Comércio/ Giulia Simmons

“Meu artesanato é da cultura inca. Tem bolsas, cerâmicas, blusas de frio, tudo com muita cor. O tecido peruano, as mantas, a lã de alpaca, e as outras matérias-primas vêm do Peru mesmo. Por sorte, tem sempre um parente que está indo e voltando, e traz pra mim. A minha família inteira trabalha com artesanato, tanto os que estão lá na minha cidade como os que estão aqui no Brasil”, conta. 

Antes de o mundo se dividir em fronteiras e delimitações, os povos originários da América Latina, comenta Sílvia, compartilhavam um continente sem fronteiras, permeado por matas e com trânsito livre entre os povos. Por isso ela achou curioso, quando chegou ao Brasil, tantas etnias distintas. 

“No meu país há os indígenas andinos e os amazônicos. Aqui, são várias etnias que fui conhecendo aos poucos: Maxakali, Pataxó, Xukuru-Kariri, Krenak. E me senti acolhida entre eles”, diz.

  • Maxakali: “nós”
  • Pataxó: “barulho das águas”
  • Xukuru-Kariri: junção de dois povos, os Xukuru e os Kariri, cujos significados têm origem incerta
  • Krenak: “cabeça da terra”

Sílvia também integra a cultura brasileira à sua própria. “Percebi que o brasileiro gosta muito de brilho,  tanto que misturei isso a algumas coisas que eu faço, um couro brilhoso, por exemplo, para agradar aos consumidores brasileiros. No começo eu tinha mais dificuldade e medo de não ter pegado muito desse jeito, mas hoje isso já mudou. Tanto que os clientes me procuram diretamente. E eu aceito todas as formas de pagamento, Pix, maquininha, dinheiro, isso facilita muito. Com as vendas na Feira Hippie, que acontece somente aos domingos, eu tiro cerca de R$ 2,5 mil por mês, que servem ao meu sustento e ao da minha família”, conclui. 

Comércio na cidade depende da aldeia

Em Minas Gerais, vivem cerca de 36.700 indígenas. Em Belo Horizonte, são quase 2.700, conforme dados do último Censo do IBGE. A grande maioria da população originária residente na RMBH, que chega a 7 mil indivíduos, vive em áreas urbanas, segundo Avelin Kambiwá. Mesmo no Brasil, a proporção de indígenas nas cidades é maior do que em aldeias: 54%.

“A gente tem essa população em contexto urbano cada vez maior, e o número de indígenas aldeados é menor. Esses que vivem nas cidades não têm acesso ao trabalho formal, então, o empreendedorismo acaba sendo uma forma de sobrevivência. Hoje 90% da renda desses indígenas aqui na RMBH vem do artesanato, e outros 10% de trabalhos informais, os ‘bicos’. Nesse caso, mulheres mais velhas, principalmente, trabalham em casas de família, com faxina, e os mais jovens, em lanchonetes e restaurantes”, explica Avelin.

Os produtos comercializados em Belo Horizonte, que tem como principal ponto de escoamento dessa produção a Feira Hippie, são feitos nas aldeias ao redor. “Então, há esse fluxo de ir à aldeia buscar a matéria-prima, produzir os itens e vender nas feiras de BH. Ou trazer diretamente os produtos prontos da aldeia, quando em maiores quantidades, como manacás e cocares”, exemplifica. Assim, entre a aldeia e a cidade, os povos originários seguem em busca de autonomia financeira no século XXI.


* Essa reportagem é a primeira de uma série de três matérias.

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