Economia

Empreendedorismo LGBT ganha força em BH como forma de resistência, renda e acolhimento

Dados de pesquisa do Sebrae revelam que mais da metade da comunidade LGBTP no Brasil está envolvida com empreendedorismo
Empreendedorismo LGBT ganha força em BH como forma de resistência, renda e acolhimento
Foto: Reprodução Adobe Stock

Belo Horizonte acompanha uma tendência nacional de fortalecimento do empreendedorismo entre pessoas LGBTQIA+. Dados inéditos do Sebrae apontam que mais da metade dessa população no Brasil já empreende, está criando um negócio ou tem intenção de abrir um nos próximos três anos. Em Minas Gerais, relatos como o de Aline Soares, fundadora do restaurante Judite Comida de Vó, do Antony Clark, dono do Ateliê do Hermes, e do ativista Maicon Chaves, presidente da Cellos-MG, mostram como a autonomia financeira tem se tornado também instrumento de resistência e inclusão.

Segundo o levantamento do Sebrae, 24% da população LGBTP (composta por lésbicas, gays, bissexuais, pansexuais, transgêneros e/ou travestis) com mais de 16 anos já lidera o próprio negócio, enquanto 11% está em fase de criação e 20% tem intenção de empreender. Para muitas dessas pessoas, a decisão não foi apenas econômica, mas motivada por exclusões estruturais do mercado de trabalho tradicional.

“Pessoas LGBTQIA+, especialmente aquelas que se declaram publicamente, encontram dificuldades significativas para serem inseridas no mercado de trabalho, tornando o empreendedorismo uma saída para alcançar autonomia financeira e crescimento pessoal”, explica a diretora de Administração e Finanças do Sebrae Nacional, Margarete Coelho.

Desafios para uma mulher lésbica no empreendedorismo

Aline Soares, proprietária do restaurante Judite
Foto: Divulgação Judite/Bocado

Em Belo Horizonte e outras cidades mineiras, essa realidade se repete, impulsionando a construção de negócios com identidade própria e foco em acolhimento. No caso de Aline Soares, o empreendedorismo surgiu de forma natural. Vinda de uma família de comerciantes, ela abriu seu primeiro negócio em 2015 após trabalhar como cozinheira em restaurantes de Belo Horizonte. Hoje, com três lojas, ela vê seu restaurante de comida mineira como espaço de acolhimento, especialmente para mulheres.

“O Judite é um espaço de acolhimento sempre, para mulheres antes de tudo. Nossa equipe é formada por mulheres lésbicas ou não. O que por si só já representa e atrai semelhantes”, afirma Aline Soares.

A empresária relata que o preconceito ainda é presente. “Quando abri o Judite há três anos, decidi não contratar mais homens como colaboradores, pois o preconceito é grande. Muitos não sabem ser liderados por uma mulher, sobretudo lésbica”. Os desafios e preconceitos também se estendem às relações comerciais. “Lidar com fornecedor, principalmente de bebidas, sempre foi um desafio”, conta.

A força de empreender, para ela, vem de uma personalidade moldada pela luta. “Ser uma mulher lésbica e enfrentar muitos desafios me deu forças para continuar”, diz. Ela vê seu empreendimento como ferramenta de transformação social e acredita que ocupar espaços é, por si só, um ato de resistência. “Quando vemos colegas LGBTQIA+ ocupando lugares de destaque, vencemos juntas, todas e todes”, finaliza Aline Soares.

Ateliê vira espaço de conexão e afeto

Antony Clark, dono do Ateliê do Hermes
Foto: Arquivo Pessoal / Antony Clark

Advogado por formação, o empreendedor Antony Clark viu no ateliê de cestas de café e tábuas de frios a oportunidade de unir sua paixão pela cozinha à necessidade de gerar renda durante a pandemia. “Eu estava na faculdade, em meio à pandemia, e os escritórios estavam sem contratar. Precisava me virar. Sempre gostei muito de cozinhar, então resolvi empreender, mesmo sendo algo completamente fora da minha área de formação”.

Hoje, ele concilia a advocacia com o Ateliê Gastronômico Hermes, atuando nas duas frentes. “São áreas bem diferentes, mas que me completam. No direito, uso minha formação, e no ateliê, coloco toda minha criatividade nas receitas e ideias”, explica Clark.

A primeira cesta vendida — um presente de aniversário de namoro encomendado por um casal de mulheres — é lembrança constante do vínculo com a comunidade LGBTQIA+. “Foi nosso primeiro pedido, feito por uma mulher lésbica para a namorada. Elas acreditaram em mim quando eu estava começando, e até hoje são clientes frequentes. Isso mostra como nosso negócio carrega, sim, afeto, cuidado e representatividade”.

Embora nunca tenha enfrentado preconceito direto no negócio, Antony reconhece a importância de criar espaços seguros. “Mesmo que o ateliê não tenha ações afirmativas declaradas, quem está por trás dele sou eu — um homem gay. Isso, por si só, já carrega uma mensagem. Nosso lema é ‘enviar afeto’, e o afeto não faz distinção de gênero, de classe, de cor e nem de orientação sexual”, ressalta.

Para ele, o empreendedorismo dentro da comunidade LGBT surge como resposta à exclusão. “A gente cria nossos próprios espaços quando o mercado formal ainda é hostil ou conservador. Empreender vira uma rota de fuga, de liberdade. E foi o que eu fiz”, conta Antony Clark.

Beleza e propósito: estúdio transforma realidade de pessoas LGBTQIA+

A história do estúdio de beleza comandado pela empresária Nataly Sgoviah começou a partir de uma necessidade pessoal: durante sua transição capilar, ela vendia produtos para cabelos cacheados, mas não tinha profissionais para indicar quando clientes perguntavam quem cuidava dos seus fios. Foi então que decidiu se tornar essa referência. O negócio que começou em um quartinho, cresceu e hoje ocupa um casarão no bairro Santo Agostinho, na região Centro-Sul de Belo Horizonte.

Nataly Sgoviah, dona do estúdio de beleza Nataly Sgoviah Conceito
Foto: Divulgação / Marcos Prates

Mais do que um espaço de beleza, Nataly fez questão de criar um ambiente de acolhimento. Com atendimento agendado, clima tranquilo e foco no bem-estar, o estúdio valoriza o cuidado com a autoestima e o conforto emocional de clientes e colaboradoras.

“Aqui a gente tem a escala 5×2 e também a 4×3. A gente tem mães que trabalham em home office para poder ficar mais tempo com os filhos, ter um pouco mais de qualidade de vida”, explica a empreendedora.

O time é formado majoritariamente por mulheres — cis e trans —, mães solo, pessoas negras e da comunidade LGBTQIA+. “A oportunidade que eu não tive lá atrás é algo que eu quero fazer, abrir as portas. Eu sempre tive essa ideia de criar um ambiente saudável e seguro para essas pessoas trabalharem e crescerem”, conta.

Essa postura reflete também na seleção do público: quem chega ao estúdio já sabe que ali não há espaço para desrespeito. Além disso, a equipe conta com condições de trabalho diferenciadas e estrutura acolhedora: há espaço de descanso, café em equipe, reuniões mensais com celebrações e uma cultura interna que valoriza o bem-estar acima da produtividade desenfreada.

“Eu prefiro realmente deixar de atender cliente do que chegar alguém aqui no estúdio e maltratar meus colaboradores, ser grossa, ou querer diminuir meu trabalho. Eu prefiro perder o dinheiro do que perder a minha paz e ter problemas”, revela.

A empresária reforça que sempre deixou claro quem é: mulher lésbica, com posicionamentos firmes e compromisso com o respeito. Mesmo assim, ela comenta que toma alguns cuidados. “Eu não posto foto com a minha parceira ou com quem eu estiver, a gente tem que ter uma certa cautela. Porque se não, a gente perde seguidores, perde clientes”.

Apesar de todo o cuidado, os desafios são constantes — especialmente por estar à frente de um negócio liderado exclusivamente por mulheres. “Sempre perguntam quem é o sócio, o gerente, o marido. Nunca acham que sou só eu”, conta.

Nataly Sgoviah, dona do estúdio de beleza Nataly Sgoviah Conceito
Foto: Divulgação / Marcos Prates

Sem investidores ou apoio bancário, Nataly e sua equipe enfrentam os altos e baixos do mercado com resiliência, mas a empresária reconhece a importância do espaço que construiu para a comunidade LGBTQIA+.

“É realmente ter um lugar de acolhimento e tentar mudar a realidade dessas pessoas. Quando a gente fala, por exemplo, de mulher trans, todo mundo já pensa em uma coisa marginalizada. É justamente pra gente se fortalecer, dar oportunidade de mudar a vida dessas mulheres”, conclui.

História de exclusão reforça empreendedorismo LGBT

Maicon Chaves, presidente do Cellos-MG
Foto: Arquivo Pessoal / Maicon Chaves

Para o presidente do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual e Identidade de Gênero de Minas Gerais (Cellos-MG), Maicon Chaves, o empreendedorismo da população LGBT não deve ser dissociado de sua história de exclusão. Ele prefere o termo “economia solidária”, por entender que a lógica tradicional do empreendedorismo está atrelada ao sistema capitalista excludente.

“A existência da nossa identidade e sexualidade é recortada por fatores sociais que exigem criatividade para que as pessoas consigam ter sua renda e viver suas vidas. O empreendedorismo surge daí”, explica.

O Cellos-MG, sediado em Belo Horizonte, atua em rede apoiando a visibilidade e circulação de pequenos empreendedores LGBT em eventos e espaços comunitários. A sede da organização abriga exposições de artigos produzidos por pessoas da comunidade.

“Quem faz nosso lanche todos os dias é uma companheira lésbica, preta e periférica. A gente tenta fortalecer essas redes no micro, mas pensando que elas precisam se estender enquanto política pública”, afirma o presidente do Cellos-MG.

Chaves também critica a ausência de políticas estaduais efetivas voltadas para o público LGBT e defende articulações intersetoriais. “Não adianta vir apenas um fomento da Secretaria Nacional LGBT. Tem que vir com saúde, ciência social, educação. São estratégias articuladas. Nossa sobrevivência depende do trabalho”, ressalta.

Empreendedorismo como forma de resistência

Foto: Divulgação Sebrae

A pesquisa do Sebrae reforça essa visão: 40% dos entrevistados afirmaram que a identidade de gênero ou orientação sexual influenciaram diretamente na decisão de empreender. Entre os setores preferidos pela comunidade, o de entretenimento e cultura aparece com 14% de participação — número significativamente superior à média entre pessoas não LGBT+, de apenas 2%.

Apesar de o empreendedorismo ser visto como via de emancipação, a pesquisa mostra que 57% das pessoas LGBTP acreditam no sucesso de seu negócio, contra 66% entre os não LGBT+. A diferença reflete, em parte, as barreiras para a formalização, como custos e burocracia. Questões como o uso do nome social ainda são obstáculos reais, especialmente para pessoas trans.

Em Belo Horizonte, os exemplos de resistência como o de Aline e as articulações coletivas promovidas por organizações como o Cellos-MG evidenciam o papel central do empreendedorismo no fortalecimento da comunidade LGBT. Mais do que uma saída para o desemprego ou uma alternativa econômica, empreender se torna, em muitos casos, um ato político, de visibilidade, dignidade e transformação.

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