Indústria tem papel essencial na formação de mão de obra

Aos 14 anos, Guilherme Sales se preocupava com a mãe, que criava sozinha os dois filhos. Ainda adolescente, queria trabalhar para ajudar em casa e não sabia como nem o que fazer. Até que, em 2015, com 17 anos, ele soube que a Precon, empresa de material de construção em Pedro Leopoldo com 400 funcionários, tinha lançado o programa Jovem Aprendiz, em parceria com a Fiemg.
Guilherme enfrentou um processo seletivo que teve 100 candidatos e foi o único homem entre os dez classificados para fazer o curso de Aprendizagem em Administração. No contraturno escolar, ele passou seis meses em sala de aula no Senai e mais seis na empresa, tendo aulas práticas em setores como departamento de pessoal, RH, marketing.
Com o meio salário mínimo que ganhava, conseguiu “dar uma força em casa”, pagando contas de luz e água, ao mesmo tempo em que aprendia tudo o que cerca o dia a dia de uma empresa do porte da Precon. “O curso extraiu o melhor que eu tinha e eu absorvi o melhor que podia”, conta o rapaz. “Eu via a fábrica acontecendo na minha frente e me apaixonei por produção”, acrescentou.
Ao fim do curso, ele foi o único efetivado. Começou a trabalhar na empresa e, ao mesmo tempo, iniciou a faculdade, que cursou com bolsa integral graças à pontuação no Enem. O curso escolhido, claro, foi Engenharia de Produção, que está concluindo nos próximos meses. No ano passado, assumiu a área de Inovação da empresa que, sob nova direção, agora é a DVG Precon.
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“Eu sou uma cria do Senai. Estudar lá fez com que eu vencesse a barreira da falta de experiência e me colocou diretamente no mercado de trabalho. Lá eu aprendi a trabalhar”, garante Guilherme.
Na terceira reportagem da série do DIÁRIO DO COMÉRCIO sobre redução de custos industriais, o foco é o profissional qualificado como importante fator de equilíbrio da planilha de custos. Afinal, ele representa menos retrabalho e menos acidentes, mais eficiência e mais produtividade. Atentas a este fator de competitividade e economia, as indústrias vêm cada vez mais adotando programas de capacitação, treinamento e reciclagem de seus trabalhadores.
“Em um país cuja qualidade de ensino é uma das mais mal avaliadas em rankings internacionais, atribuir à educação formal a responsabilidade de formar profissionais competentes e ajustados às demandas e necessidades empresariais contemporâneas é, sem dúvida, uma visão equivocada”, observou a consultora de empresas e coaching de carreiras, Georgina Alves Vieira da Silva.
“Hoje se fala muito, entre profissionais de RH, que capacitação e desenvolvimento de pessoas seguem uma proporção 30/70, o que significa que apenas 30% da formação de mão de obra deve ser esperada do meio acadêmico. Os demais 70% são de responsabilidade das empresas. Ou seja, cada vez mais as empresas devem responder pela qualificação de seu pessoal. Colegas treinando colegas”, destacou.
Braço de formação profissional
Nessa tarefa, as empresas contam com um importante parceiro: o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, Senai, que está fazendo exatos 80 anos em 2022. Aliás, a necessidade de formar profissionais nasceu junto à moderna indústria brasileira. Criada em 1933, a Fiemg tem no Senai, desde 1942, seu braço de formação profissional.
Ele surgiu em plena Segunda Guerra Mundial; assim como acontece nesse momento na Ucrânia, o conflito europeu impedia produtos importados de chegarem ao Brasil, o que impeliu o País a criar seu próprio parque industrial. E, naturalmente, precisava de formar profissionais para fazê-lo funcionar.
Hoje, o Senai é um dos cinco maiores complexos de educação profissional do mundo e o maior da América Latina. Seu principal objetivo é apoiar 281 áreas industriais por meio da formação de recursos humanos e da prestação de serviços técnicos e tecnológicos. Os programas de capacitação profissional são oferecidos nas modalidades de aprendizagem, habilitação, qualificação, aperfeiçoamento, técnico, superior e pós-graduação.
Parte dos recursos do Senai é proveniente da indústria por meio da contribuição de 1% sobre o total da folha de pagamento mensal. O restante vem da venda de produtos como cursos e serviços técnicos.
Segundo a Fiemg, mais de 1% da população mineira está matriculado em cursos do Senai e do Sesi. O Jovem Aprendiz, programa gratuito voltado para a preparação e inserção de jovens no mercado de trabalho, é o primeiro passo neste sentido.
Quem é aprendiz no Senai faz cursos enquanto cursa o ensino formal e trabalha em uma das empresas parceiras. É preciso ter entre 14 e 24 anos (a idade limite máxima não se aplica a pessoas com deficiência), cursar a partir do 9º ano do Ensino Fundamental ou já ter concluído o Ensino Médio.
O curso tem duração máxima de 2 anos. Para alunos com deficiência, o período de contratação pode ser estendido. Os jovens aprendizes têm os mesmos direitos trabalhistas e previdenciários dos demais empregados: férias, 13º salário, vale-transporte e FGTS.
Além de oferecer cursos presenciais em mais de 35 áreas tecnológicas, o programa, como a própria indústria, evoluiu: o Jovem Aprendiz Aprendizagem 4.0 oferece aulas EAD e presenciais, englobando as competências técnicas e socioemocionais da indústria do futuro, o que inclui manufatura avançada, tecnologia da informação e mecânica 4.0.
Treinamentos sob medida
Alguns treinamentos são feitos sob medida para as necessidades da empresa, casos dos cursos “in company”, direcionados a uma competência exclusiva ou equipamentos específicos da empresa. Os trabalhadores são treinados pelos instrutores do Senai nas próprias indústrias ou a distância.
Esse tipo de formação é oferecido em empresas como a Usiminas que, também em parceria com o Senai, desenvolve ações de sua Universidade Corporativa, como a de desenvolver tecnicamente os profissionais da manutenção, preparando-os para assumir posições superiores na carreira.
A empresa criou o programa “Universidade Corporativa Usiminas” para incentivar o protagonismo dos colaboradores e multiplicar o conhecimento gerado na companhia. São vários cursos disponibilizados em parceria com outras instituições de ensino, como o próprio Senai, a UFMG, a ABM, além de instituições certificadoras.
A Usiminas é a empresa brasileira com o maior quadro de profissionais certificados como Engenheiros da Qualidade. Hoje, ela tem 230 colaboradores certificados. Uma curiosidade: em 2021, das 120 vagas do programa de aprendizes, 74 foram ocupadas por mulheres, inclusive uma turma inteira foi formada exclusivamente por elas.
Na educação continuada, são disponibilizadas bolsas (cujos subsídios vão de 70% a 100% do custo) de graduação, Pós Individual; Pós In Company; Mestrado; MBA e pós-graduação internacional – em 2021, foram dez nesta última modalidade. Também no ano passado, o programa de idiomas ofereceu 165 bolsas de inglês e o de Analytics, voltado para a Cultura de Dados, beneficiou 60 colaboradores.
Uma escola para a construção civil
Dada a sua importância para a indústria mineira – são mais de 20 mil empresas, que geram cerca de 300 mil empregos – a Construção Civil ganhou, em Belo Horizonte, uma unidade do Senai para preparar mão de obra especificamente para o setor. É o Senai Paulo de Tarso, localizado na Via Expressa.
O Senai da Construção, como é conhecido, foi criado em 1979 e logo tornou-se evidente a necessidade de ampliar suas instalações para suprir a constante e crescente demanda por mão de obra qualificada na Construção Civil.
Atualmente o Senai Paulo de Tarso tem 900 alunos, com várias entradas: cursos técnicos de edificações, meio ambiente e segurança do trabalho; aperfeiçoamento profissional, iniciação e qualificação profissional nas áreas de mestre de obras, pedreiros, instaladores, etc.
A unidade já oferece também cursos de qualificação profissional com foco nas novas tecnologias da Construção Civil como BIM – Building Information Modeling, Norma de Desempenho, Lean Construction.
“Antigamente, o filho do pedreiro começava na obra como servente e, com o tempo, virava pedreiro, podendo chegar a encarregado. Em algum momento, esse ciclo parou. Os jovens preferiram serviços menos pesados, em um ambiente menos agressivo”, contou o presidente da Câmara da Indústria da Construção da Fiemg, Geraldo Linhares.
No início dos anos 2000, conta Linhares, os agentes financeiros passaram a exigir certificação de qualidade das construtoras que se candidatavam a financiamentos, o que exigia treinamento. Por vias indiretas, a demanda por qualificação de mão de obra chegou à indústria da construção civil.
E também a tecnologia: pouca gente sabia fazer, por exemplo, uma parede de drywall. Novos materiais e maneiras de fazer pediam um profissional com maiores habilidades. “E o Senai foi o pilar de sustentação desse processo; hoje há 13 escolas do Senai onde há sindicatos da construção civil em Minas Gerais. E a Estácio de Sá é uma referência entre elas”, elogiou o dirigente.
Atualmente os salários no setor são atraentes e recompensam o profissional qualificado: um bom pedreiro pode ganhar mais que um técnico de edificações. Afinal, ele é fundamental em um processo que substituiu o desperdício que chegava a um terço do material da obra no século passado e hoje contabiliza apenas 3% de perdas, com a evolução e inovação no setor.
“Com a elevação do custo pressionando a venda, é importante otimizar o processo e ser competitivo, com menos tempo de obra, menos aluguel de equipamentos, enfim, custos menores”, explicou Linhares. “Se não existisse o Senai, nossa indústria estaria 100 anos atrasada. O filho do pedreiro hoje quer ser pedreiro, porque ele tem novos horizontes, técnicas e melhores salários”, completou.
Ética e liderança
A gerente do Senai Estácio de Sá, Priscilla Oliveira, afirmou que, além de aprender a fazer, o aluno da escola também aprende e trabalha competências como Ética e Liderança. “A empresa até pode ter um custo maior ao contratar o profissional qualificado, mas o retorno é imediato. Ele tem competências como construção enxuta, combate ao desperdício, produtividade e sustentabilidade da obra; além disso, sabe trabalhar em equipe, ou seja, ele rende muito mais”, atesta.
Segundo a educadora, a indústria da construção civil está demandando muita contratação e nem sempre encontra profissionais capacitados. “Temos uma relação muito boa com os sindicatos da construção, assim podemos ouvir as empresas e criar os cursos que o setor demanda”, revelou.
Marlon Novcci Marangon, hoje com 28 anos, é um dos milhares de alunos que passaram pela Estácio de Sá. Quando entrou na universidade para cursar Engenharia, ouviu falar de um curso da escola, o “Futuros Engenheiros”. Se inscreveu na seleção e, mesmo sacrificando algumas cadeiras da faculdade na parte da manhã, conseguiu fazer o curso de seis meses, onde encontrou justamente o que procurava. Em primeiro lugar, conhecimento prático. “Lá, eu tive oportunidade de fazer um concreto, uma argamassa. Quando cheguei na obra, tudo que encontrei eu já tinha visto no Senai”, contou Marangon.
Outro tipo de conhecimento que o hoje engenheiro adquiriu foi fundamental: o conhecimento sobre si mesmo. “Na parte comportamental, aprendi a trabalhar em equipe, enfrentar um processo seletivo, uma entrevista de emprego, descobrir minhas habilidades pessoais; tudo isso me ajudou muito a conseguir estágio numa construtora, onde cheguei a Auxiliar de Engenharia e, posteriormente, o trabalho como engenheiro numa empresa de fundações”.
A hora é das empresas
Mesmo com experiências de formação específica como os treinamentos in company e os cursos para operar novas tecnologias na construção civil, a qualificação profissional no país tem um longo caminho a trilhar, ainda que já siga a direção certa. É preciso ir além, sustenta a Consultora de empresas e coaching de carreiras, Georgina Alves Vieira da Silva, que é mestre e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP.
Para ela é preciso pensar novas competências, tanto as relacionadas à tecnologia, pelo incremento da automação, como à capacidade de interpretação de texto, para compreender os manuais e as instruções escritas, e um mínimo de raciocínio matemático e lógico. “Quando se estende à formação especializada, mais exigências devem ser incluídas, entre as quais o domínio do idioma inglês, uma capacidade de rapidamente entender as linguagens de programação, além da adequação à cultura e horário de trabalho das empresas multinacionais”, disse a especialista.
Algumas empresas acreditam que não é delas essa função, pois podem estar formando pessoal para a concorrência. Para Georgina Vieira, esta é uma visão equivocada. “O que faz um empregado sair de uma empresa não é a sua qualificação, mas como ela é aproveitada, remunerada e reconhecida. Além disso, se o profissional muda de emprego após a qualificação, é o país que ganha, pois a nossa baixa produtividade afasta investidores”, apontou.
Ela conta o exemplo recente de uma empresa americana, que tinha decidido instalar uma fábrica no Brasil. O que a afastou não foram os nossos altos impostos, mas a baixa produtividade da nossa mão de obra. “O que se faz nos Estados Unidos com 6 profissionais, aqui precisaria de 19. Por causa do retrabalho, pela demora em ler, compreender e atender as exigências da operação, por operar as máquinas de forma deficiente e, assim, afastá-la da linha de produção em tempo médio maior do que as mesmas máquinas em países cuja mão de obra é mais qualificada”, revelou a consultora.
Um outro exemplo vem de uma empresa de mineração cuja programação é disponibilizada diariamente em cada mudança de turno. Por não entender bem as consequências de determinada especificação do tamanho de pelotas de minério, o supervisor produziu um dia inteiro de material que, além de ocupar espaço de armazenagem, fez atrasar o envio da carga correta.
“Na França, em se falando de profissional especializado, há um processo de qualificação de empregado que independe da empresa em que trabalha. Cada nova competência é registrada em seu histórico e, assim, o profissional não precisa, a cada novo emprego, começar do zero para provar a sua competência”, esclarece a psicóloga. Ou seja, a qualificação não formal recebe um tratamento formal reconhecido no meio, provendo o empregado de mais autonomia, que se soma ao esforço coletivo em favor do país e da renda dos profissionais.
“Todos nós já perdemos tempo para que nossas demandas sejam entendidas e atendidas. Seja no comércio presencial ou online, seja nos serviços ou atendimentos que solicitamos a qualquer empresa, seja na troca de um produto que chegou com avarias ou sem funcionar. Erro de embalagem? Erro de controle de qualidade? Erro da área de Atendimento ao Cliente? Erro na prestação de serviços? Talvez de todos. E também da sociedade que se contenta com muito pouco na educação de seus filhos”, lamentou Georgina Vieira.
“É evidente que qualquer profissional precisa se dedicar continuamente à sua atualização profissional, mas deixá-lo sozinho nesta empreitada é apostar em resultados empresariais decepcionantes”, concluiu.
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