Economia

Maior preço em cem anos encerra era da comida barata

Maior preço em cem anos encerra era da comida barata
Crédito: Arquivo/ABr

São Paulo – O principal índice global de preços de alimentos das Nações Unidas atingiu em março o maior nível em 61 anos, e série do Fundo Monetário Internacional (FMI) a partir de 1900 aponta recorde em cem anos.

O patamar atual supera as marcas do período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e da primeira crise mundial do petróleo (1973-1974), segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Os dados do FMI sugerem que fica atrás somente do nível registrado após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Pressionada pelo conflito na Ucrânia, a inflação de alimentos vinha subindo desde 2000 -e ganhou ímpeto antes do início da pandemia, no final de 2019.

Além disso, está relacionada também a causas estruturais como o aumento da renda na Ásia e na África e mudanças climáticas, que tornam safras imprevisíveis.

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No conjunto, esses fatores marcam o fim de uma era de alimentos relativamente baratos, que ajudaram a reduzir a pobreza e a fome no mundo na segunda metade do século 20.

Para o Brasil, a explosão nos preços de comida e combustíveis criou um paradoxo: enquanto a população empobrece e reduz o padrão alimentar, as contas públicas melhoraram e o risco fiscal diminuiu com o aumento da arrecadação de impostos gerado por mais receita com exportação de commodities, como grãos e petróleo.

Em março, o índice de preços de alimentos da ONU calculado pela Organização para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) atingiu 159,3 pontos, batendo recorde anterior, de 1974 (137,4), e pressionado por todos os seus componentes: cereais, carnes, óleos, laticínios e açúcar.

Juntas e antes da guerra, Ucrânia e Rússia respondiam por 25% das exportações globais de trigo e 15% das de milho. O conflito também fez o preço do petróleo disparar mais de 45% neste ano, pressionando fretes e a cadeia de distribuição de alimentos.

Para o coordenador do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre), André Braz, preços elevados na alimentação devem “ficar no radar” por longo período. “Não se trata só de efeitos sazonais. Será muito difícil termos quedas sustentadas nos próximos anos.”

Nenhum dos itens alimentícios no Brasil tem variação em 12 meses abaixo de dois dígitos. Mesmo sem contar commodities como grãos, o conjunto de hortaliças e legumes subiu 46,2% no período, segundo o IPC da FGV.
A estimativa pessoal de Braz para a inflação de alimentos neste ano é de 13%, bem acima dos 7,5% a 8,5% que o mercado prevê para o IPCA, índice oficial geral do IBGE.

Países muito dependentes da importação de alimentos e com contas externas frágeis seriam os mais afetados -e uma corrida em curso para aumentar estoques tende a pressionar mais os preços.

Mesmo antes da pandemia e da guerra na Ucrânia, o FMI já apontava para o fim do período alongado, até os anos 2000, de alimentos mais baratos.

“Desde a virada do século, os preços dos alimentos vêm subindo de forma constante, exceto pelos declínios na crise financeira global no final de 2008 e início de 2009. Isso sugere que os aumentos são uma tendência e não refletem apenas fatores temporários”, dizia relatório do Fundo publicado em 2011, com dados que retrocediam a 1900.

Para José Eustáquio Alves, doutor em demografia e professor por duas décadas na Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, uma série de fatores estruturais deve manter os preços dos alimentos em patamar elevado.
Alves destaca o aumento da renda em países populosos da Ásia, como China e Índia, sustentando preços (sobretudo de grãos e carnes), assim como o crescimento econômico e da população africana nos próximos anos.

Segundo o Banco Mundial, a população em extrema pobreza (vivendo com menos de US$ 1,90 ao dia) na África deve cair a 23% do total daqui a oito anos, ante 41% em 2015 -com taxas de crescimento econômico no continente superiores à média global, pelo menos até a pandemia.

O economista-chefe da MB Associados, Sérgio Vale, destaca que os preços das commodities em alta neste momento vêm dando um “presente” para o Brasil em arrecadação tributária e aumento da atividade econômica.

Pelos seus cálculos, toda a cadeira do agronegócio representa cerca de 27% do PIB. Somados os setores de commodities minerais e combustíveis, a fatia sobe para 40%.

“O problema é que os 60% restantes vão muito mal. Mas há entrada de capital externo e aumento da receita tributária, melhorando as contas públicas e ajudando a reduzir o valor do dólar, moeda em que as commodities, como grãos, são denominadas.”

Mesmo assim, com o atual ritmo de aumento de preços, desemprego elevado e queda da renda (-8,8% em 12 meses), os brasileiros devem seguir pressionados pelos alimentos.

Segundo pesquisa Datafolha do final de março, 1 de cada 4 brasileiros afirma que a quantidade de comida disponível foi inferior à necessária para alimentar a família nos últimos meses.

Quanto mais pobre, mais a inflação de alimentos é percebida, pois habitação e comida consomem a maior parte da renda. Segundo estratificação do Datafolha, 53% das casas brasileiras atravessam o mês com menos de dois salários mínimos (R$ 2.424). Nelas, 35% acusaram falta de alimentos.

Levantamento da Rede Penssan ao final de 2020 (antes da disparada dos alimentos no ano passado e agora) mostrava que mais da metade (55%) dos brasileiros sofria de algum tipo de insegurança alimentar (grave, moderada ou leve).

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