Economia

MPF pede suspensão da mineração de lítio no Jequitinhonha por falta de consulta a povos tradicionais

Ministério Público Federal recomenda que a ANM revise autorizações e interrompa atividades de mineração na região do Vale do Jequitinhonha
MPF pede suspensão da mineração de lítio no Jequitinhonha por falta de consulta a povos tradicionais
Foto: Divulgação / Atlas Lithium

O Ministério Público Federal (MPF) recomendou à Agência Nacional de Mineração (ANM) a suspensão imediata de autorizações para pesquisa e lavra de lítio no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. O motivo, segundo o MPF, é a ausência de consulta prévia, livre, informada e de boa-fé a comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais da região, um direito previsto na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), reconhecida com status supralegal pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

A recomendação atinge diretamente projetos em municípios como Araçuaí e Itinga, epicentros da nova corrida do lítio no Brasil. A ANM tem 20 dias para se manifestar sobre a recomendação, que também orienta o órgão a se abster de liberar novas permissões até que o diálogo com as comunidades seja devidamente realizado. 

Procurada, a ANM afirma que recebeu a recomendação encaminhada pelo Ministério Público Federal e está analisando os termos apresentados. “A manifestação da Agência ocorrerá dentro dos canais legais e administrativos competentes, em conformidade com a legislação”.

Mais de 6 mil processos minerários na região

A medida do MPF é resultado de um inquérito civil que investiga o avanço acelerado da mineração de lítio no Vale do Jequitinhonha sem, supostamente, o devido respeito aos direitos territoriais e étnico-raciais. Segundo dados do governo federal levantados em fevereiro de 2024, existem cerca de 6.275 processos ativos de exploração mineral na região, em diferentes fases.

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Os investimentos no Vale do Lítio já totalizam R$ 5,5 bilhões e a estimativa é de cerca de 10 mil postos de trabalho diretos e indiretos gerados em uma das regiões mais carentes do Estado.

Durante a apuração, a ANM afirmou ao MPF que não via necessidade de consulta prévia, alegando que a legislação minerária não exige esse tipo de procedimento. O MPF, no entanto, rebateu a justificativa, ressaltando que o direito à consulta é garantido por tratados internacionais ratificados pelo Brasil, e que deve ser respeitado sempre que houver risco de impacto direto em comunidades tradicionais.

Impactos da mineração de lítio no Vale do Jequitinhonha

As investigações também revelaram impactos socioambientais causados por projetos já em operação. Um dos casos destacados é o do Projeto Neves, da empresa Atlas Lithium, em Araçuaí. De acordo com laudo técnico do MPF, as atividades da empresa têm causado restrições severas no acesso à água, com rompimento de tubulações que abastecem comunidades como Calhauzinho Passagem da Goiaba. O aumento da pressão sobre a infraestrutura hídrica preocupa os investigadores.

Leia também: Licenciamento de projeto da Atlas Lithium, no Vale do Jequitinhonha, é barrado pela Justiça; entenda

Outro laudo, referente à empresa Sigma Mineração, apontou falhas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) apresentado em 2021. O documento alerta para o risco de interferência direta no Ribeirão Piauí, principal fonte de água da região, devido ao rebaixamento do lençol freático para exploração mineral. A situação é considerada crítica, sobretudo durante os períodos de estiagem. 

A Atlas Lithium e a Sigma Lithium foram procuradas, mas ainda não responderam aos questionamentos da reportagem sobre as recomendações do Ministério Público Federal. 

Além disso, o MPF identificou sobreposição de áreas mineradas com territórios de comunidades tradicionais, o que prejudicaria modos de vida, economias locais e ecossistemas nativos. Em Araçuaí, por exemplo, os processos minerários incidem sobre terras de pelo menos duas comunidades, que não foram consultadas.

Segundo o documento, no total, 248 comunidades em 19 municípios do Vale do Jequitinhonha foram identificadas como impactadas, seja pela sobreposição de processos ou pela instalação de infraestrutura de mineração.

Denúncia de racismo ambiental e ameaça à cultura local

A recomendação do MPF também aponta para uma estrutura de racismo sistêmico, que marginaliza comunidades negras e indígenas na região. Segundo o órgão, o avanço da mineração tem provocado desestruturação cultural e econômica, especialmente no que diz respeito à produção artesanal em barro, considerada Patrimônio Cultural de Minas Gerais e fonte de sustento para muitas mulheres da região.

“O Estado deve garantir o direito à consulta para que as comunidades decidam sobre seus territórios e modos de vida”, afirma o procurador da República Helder Magno da Silva, responsável pelo caso.

A recomendação reforça ainda o entendimento da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (6CCR) do MPF, que reconhece a autodeclaração de comunidades tradicionais como critério legítimo e com efeitos jurídicos. Isso significa que, mesmo sem titulação formal de terras, essas comunidades devem ser ouvidas antes da concessão de qualquer alvará de pesquisa ou lavra.

Repercussões internacionais e possibilidade de ação judicial

A recomendação cita decisões recentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que condenaram o Brasil e outros países por desrespeitar os direitos de povos tradicionais. Em um dos casos, o Brasil foi responsabilizado por falhas em relação a comunidades quilombolas em Alcântara (MA), onde não houve consulta para a instalação de uma base aeroespacial.

Caso a ANM não acate a recomendação dentro do prazo, o MPF poderá adotar medidas administrativas e judiciais para garantir os direitos das comunidades impactadas pela mineração de lítio no Vale do Jequitinhonha.

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