Novo modelo de crédito imobiliário pode aumentar risco de endividamento das famílias

Após o anúncio do novo modelo de crédito imobiliário, divulgado pelo governo federal no último dia 10 e já oferecido pela Caixa Econômica Federal, especialistas esperam impacto positivo direto nos setores envolvidos, como construção civil, financeiro e imobiliário, mas alertam para o risco de endividamento das famílias e o fim da obrigatoriedade dos bancos em destinarem 65% dos depósitos das poupanças para o crédito habitacional.
Conforme informações divulgadas pelo Banco Central (BC), o novo modelo de financiamento de crédito imobiliário viabilizará no primeiro ano, R$ 111 bilhões de recursos, tornando disponíveis R$ 52,4 bilhões a mais, em relação ao modelo vigente para financiamento habitacional nesse período, dos quais R$ 36,9 bilhões de forma imediata. O que significa que mais pessoas terão acesso ao crédito para aquisição da casa própria e mais financiamentos imobiliários serão concedidos, impulsionando o mercado imobiliário, o sistema financeiro e a construção civil.
A presidente da Comissão Estadual de Direito Imobiliário da OAB/MG, Eliza Novaes, comemora as mudanças e elenca dois pontos de atenção nas novas regras: o aumento do teto de financiamento que passa de 70% para 80% do imóvel e o aumento do limite para financiamento de imóveis com o uso do Fundo de Garantia Sobre Tempo de Serviço (FGTS), que passa de R$ 1,5 milhão para R$ 2,25 milhões.
“Novas famílias passam a poder utilizar os benefícios do Sistema de Financiamento de Habitação (SFH) e isso pode gerar nos compradores uma falsa impressão de capacidade financeira, comprometendo a renda acima dos 30% recomendados, acarretando um risco importante de endividamento”, alerta.
O advogado especialista em direito imobiliário e civil e diretor da Caixa Imobiliária Netimóveis, Kênio de Souza Pereira, alega que tal medida atende a realidade do mercado, tendo em vista que os valores dos imóveis subiram mais de 55%, desde a última definição do preço limite do imóvel. “Dessa forma, o comprador poderá comprar uma moradia melhor, tendo mais opções de aquisição diante do reajuste, podendo assim utilizar seu saldo do FGTS de maneira mais eficiente e benéfica”, comenta.
O especialista alerta que, qualquer pessoa que financia um imóvel de maior valor, acaba aumentando as chances de ficar inadimplente. Por isso, Pereira recomenda que seja feita uma avaliação das reais possibilidades financeiras do comprador. Para ele, é importante analisar se ele vai poder ou não honrar com o compromisso e a pontualidade das parcelas, sob o risco de perder o imóvel. “O ideal é que houvesse redução do valor da fatia de financiamento, quanto maior fosse o valor do imóvel”, defende.
Isso porque, conforme explica o especialista, no Brasil, o imóvel é financiado pela garantia fiduciária, ou seja, o dono do imóvel é o banco. O comprador, enquanto mutuário, é devedor fiduciante, e só toma posse quando concluir o pagamento. Dessa forma, se o comprador não honrar o pagamento por três ou cinco meses, o banco solicita o pagamento da dívida com juros e multas em 15 dias, e não honrando o que está devendo, o comprador perde o imóvel já que o banco consolida a propriedade ao pagar o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).
No mesmo sentido, o professor de ciências contábeis, da Estácio BH, Alisson Batista, diz que o novo modelo permite a compra e o financiamento de imóveis com menor descapitalização, já que admite a aquisição do bem com apenas 20% de entrada. Tal medida favorece a tomada de decisão no curto prazo. “Mas assim como antes, a compra de um bem financiado a longo prazo deve ser apurada com cautela, visto que o imóvel é um ativo de menor liquidez”, observa.
Somado a possibilidade do uso do FGTS, ele pontua que o programa foca e favorece a classe média, sobretudo as famílias com renda entre R$ 10 mil e R$ 12 mil. “Essas famílias ficavam numa lacuna entre o Minha Casa Minha Vida e as taxas de mercado que são mais onerosas para quem queria adquirir um imóvel maior e melhor localizado”, diz.
Para evitar situações desavisadas, a presidente da Comissão da OAB, Eliza Novaes, sugere que o consumidor avalie com cautela o momento de fazer o financiamento, verificando o percentual da renda comprometido e estando atento aos prazos de financiamentos. “Financiamentos de prazos muito longos, aumentam o custo total do imóvel e, por isso, é importante fazer as simulações, buscar orientações jurídicas e comparar propostas entre bancos”, diz.
Eliza Novaes esclarece que o financiamento no SFH traz seguros e encargos obrigatórios, que também elevam o custo final. “Muita gente assina o contrato sem entender quanto pagará no final. Sem a simulação, ela não fica ciente que ao comprar um apartamento de R$ 500 mil, por exemplo, poderá na realidade pagar R$ 1 milhão ou até mais”, destaca a advogada.
Especialista acredita que faltará recurso após período de transição
No novo modelo, que passará a vigorar a partir de 2027 após o período de transição, os depósitos de poupança vão continuar servindo de referência para a determinação do montante que os agentes financeiros serão obrigados a aplicar em operações de crédito.
No entanto, o percentual do saldo dos depósitos de poupança a ser aplicado nas operações de crédito imobiliário será elevado gradualmente. Até agora, 65% dos depósitos da poupança precisavam, obrigatoriamente, ser aplicados pelos bancos em crédito imobiliário; 20% eram depositados compulsoriamente no Banco Central; e 15% tinham livre aplicação.
Esse modelo, contudo, limitava a expansão do crédito imobiliário em momentos de queda nos saldos de poupança, como acontece no cenário do mercado financeiro atual. Nesse sentido, a reforma passa a permitir uma elevação gradual até 2027, para que 100% dos recursos provenientes dos saldos da poupança possam ser utilizados em crédito imobiliário. O que na prática, significa que, quanto mais valores forem depositados na poupança, mais crédito será destinado ao financiamento de imóveis.
Com isso, conforme esclarece o professor Alisson Batista, os bancos passam a ter mais flexibilidade para utilizar os recursos da poupança e também de captações do mercado, como letras de crédito imobiliário, as conhecidas LCIs. “Com a utilização de um recurso mais barato, por assim dizer, para o banco, a gente tem aí uma possibilidade de um compulsório da poupança menor e uma oferta de crédito melhor para a utilização de financiamentos imobiliários”, observa.
Isso porque os depósitos compulsórios no Banco Central serão reduzidos de 20% para 15% no período de transição (até 2027) e após o período, serão extintos.
Porém, o fim da obrigatoriedade dos bancos destinarem 65% dos seus depósitos em poupança para o crédito habitacional, prevista a partir de 2027, é ilógico na opinião do advogado Kênio Pereira. “Será ilógico o banco que recebe 15% ao ano ao aplicar nos títulos públicos do governo, sem correr nenhum risco, optar em emprestar os bilhões da poupança para os mutuários que pagarão apenas 12% ao ano, tendo ainda o risco de inadimplência e processos judiciais que discutem a retornado da moradia”, avalia.
Na visão de Pereira, ao permitir que os bancos a partir de janeiro de 2027 apliquem “onde bem entenderem” o volume total da poupança, haverá falta de recursos no mercado imobiliário já que os bancos podem optar em outros setores. “Vai faltar dinheiro”, afirmou.
Segundo o especialista em direito imobiliário, “será impossível que outras aplicações, como as Letras de Crédito Imobiliário (LCI), mesmo que no setor imobiliário, captem recursos suficientes para cobrir a ausência de crédito imobiliário, especialmente diante da recente decisão do governo em tributar os rendimentos dessa aplicação, que até meados de 2025, era isenta de Imposto de Renda”.
Para o sócio da corretora de serviços e soluções financeiras Valor Capital, Pablo Alencar, não vai faltar dinheiro no curto prazo. “Quando se reduz o compulsório obrigatório e destina-se parte dele para empréstimos, aumenta-se a liquidez do banco. Então, eles terão mais dinheiro disponível para emprestar”, avalia.
Na avaliação de Alencar, é exatamente isso que o governo quer. Ele explica que como a captação da poupança estava negativa nos últimos anos, os recursos ficaram cada vez mais escassos e, portanto, insuficientes. “Então, aumentando a fatia de 65%, tirando o 5% do compulsório nesse período de transição e aumentando para 80% o valor a ser emprestado [dentro do SFH], isso ajuda a reduzir a pressão sobre taxa de juros e estimula consultores e compradores a investir nesse mercado”, explica.
Porém, a medida possui risco, na opinião do especialista. Apesar do Banco Central deter o controle, é preciso avaliar as mudanças na prática. “O governo pode abrir mão do crédito compulsório para aumentar a oferta de crédito e os bancos, por vários motivos, não fazer a entrega total, pela dificuldade de conceder crédito já que há muitas famílias endividadas ou desviar para operações mais lucrativas”, diz.
Além disso, Alencar lembra que o principal captador de poupança atualmente no Brasil é a Caixa Econômica Federal, que é um banco do governo. “Então, com certeza ele [o governo] vai tentar ser o mais eficiente possível para garantir a eficácia dessa medida”, conclui.
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