PLs que ampliam pontos de venda de medicamentos opõem supermercados e farmácias

A discussão a respeito da autorização da venda de medicamentos isentos de prescrição (MIPs) em supermercados e estabelecimentos similares se acirra com a pressão pelo avanço de pelo menos dois projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional. A proposta tem dividido opiniões entre dois dos principais segmentos do setor varejista brasileiro, o supermercadista e o farmacêutico, e acirrado a disputa por um mercado que movimenta mais de R$ 14 bilhões anualmente.
Atualmente, conforme previsto na Lei n⁰ 5.991 de 1973, a venda de medicamentos no Brasil só pode ser realizada em locais como drogarias e farmácias (que também manipulam medicamentos, além da comercialização). Lei que pode ser alterada pelo PL 1.774/19, de autoria do deputado federal Glaustin Fokus (PSC), ou pelo PL nº 2.158/23, de autoria do senador Efraim Filho (União).
A proposta foi apresentada pelo setor supermercadista ao governo federal como uma das soluções para combater a inflação. O texto em tramitação na Câmara dos Deputados teve dois pedidos de urgência negados, enquanto o projeto do Senado ainda aguarda a realização de uma audiência pública.
Em nota, a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) afirma que o objetivo dessa proposta é reduzir os preços dos remédios. Ela destaca que, segundo um estudo feito pela Nielsen, o valor praticado na venda de MIPs era 35% menor nos supermercados, durante o período em que eles eram autorizados a comercializar este tipo de medicamento, antes da lei de 1973 (Lei n⁰ 5.991).
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O Conselho Federal de Farmácia (CFF) também utiliza dados da Nielsen para refutar esse argumento. Segundo o CFM, outra pesquisa da mesma consultoria revela que os produtos já vendidos nas farmácias e supermercados (higiene pessoal e cosméticos, por exemplo) custam entre 45% e 55% mais caro nos supermercados.
Já a Associação Brasileira das Redes de Farmacias e Drogarias (Abrafarma) destaca que os MIPs representam cerca de 30% das vendas no segmento farmacêutico. Portanto, segundo a instituição, a liberação da venda deste tipo de medicamento em supermercados poderia impactar negativamente as 93 mil farmácias que cobrem 99% das cidades do Brasil.
Como o custo de operação das farmacias é alto, a Abrafarma também alega que essa proposta poderá causar um efeito rebote de aumento no preço dos medicamentos de prescrição, prejudicando a saúde da população, principalmente dos mais pobres.
A presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado de Minas Gerais (CRF/MG), Márcia Alfenas, defende que proposta expõe a saúde pública a riscos. Ela afirma que, apesar de serem isentos de prescrição médica, os MIPs e demais medicamentos exigem supervisão e orientação de profissional qualificado para assegurar o uso correto, seguro e racional desse tipo de produto.
“Só para ilustrar, de acordo com dados divulgados pela Anvisa, em 2021, 80% do total de intoxicações envolvendo produtos sujeitos à vigilância sanitária (91.883), no Brasil, estavam relacionados ao uso irregular de medicamentos”, aponta.

Os riscos da automedicação
A dirigente também lembra que, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), um conhecido medicamento isento de prescrição se tornou alvo da automedicação em 2023. Isso acabou protagonizando quase 4% dos eventos adversos; número esse, que pode ser ainda maior, devido à subnotificação.
“A maior facilidade na comercialização associada à cultura e comodidade adotadas pela sociedade poderão agravar o cenário trágico da automedicação”, alerta.
Segundo a presidente do CRF/MG, a automedicação pode resultar em consequências mais graves do que se imagina. A especialista explica que a utilização incorreta de medicamentos também pode esconder determinados sintomas de uma doença ainda mais grave.
“Uma combinação inadequada de medicamentos pode anular ou potencializar o efeito do outro. Todo medicamento possui riscos que são os efeitos colaterais, por isso não há vantagens ao permitir a venda indiscriminada pelo comércio em geral. É no estabelecimento de saúde onde indivíduo recebe tratamento humanizado e é acolhido como paciente, não como mero consumidor”, afirma.
Maior acesso a medicamentos
Já o presidente executivo da Associação Mineira de Supermercados (Amis), Antônio Claret Nametala, pondera que a possível liberação ampliará o atendimento à população em uma demanda tão séria e essencial. Ele ressalta que a proposta é defendida, não apenas pela Abras, mas também por todas as entidades que representam o segmento supermercadista.
“Na nossa avaliação, não há desvantagem na comercialização desses medicamentos pelos supermercados. Lembrando que eles já são disponibilizados com livre acesso dos consumidores em farmácias e drogarias”, diz.
Claret ressalta que a proposta visa aumentar o acesso da população a remédios essenciais, promovendo uma redução de preços e aumento na competitividade. O dirigente pontua que o varejo supermercadista é composto por 47,6 mil lojas em Minas Gerais e 414 mil pontos de venda em todo País.
“O que se tornaria um extraordinário canal de atendimento à população para melhorar o acesso aos remédios isentos de prescrição médica”, completa.
Outro argumento utilizado tanto pela Abras quanto pela Associação Brasileira de Atacadistas e Distribuidores de Produtos Industrializados (Abad) é o fato de outros países permitirem este tipo de comércio. Ambas apontam que o cenário no Brasil é de uma legislação que garante uma reserva de mercado para o varejo farmacêutico, que comercializa outros produtos além dos medicamentos.

Infraestrutura dos supermercados e venda de medicamentos pela internet
A Abad garante que os supermercados possuem uma infraestrutura capacitada para a venda de MIPs e ainda enviou uma sugestão para a inclusão das lojas de conveniência, mercearias e outros pontos de venda no texto do PL 2158/23. Já a Abras destaca que o projeto de lei prevê a contratação de farmacêuticos para esclarecer quaisquer dúvidas dos consumidores, assim como ocorre no caso das farmácias nas vendas on-line.
Para o presidente executivo da Amis, a contratação de farmacêuticos, por parte dos supermercados, é uma iniciativa muito importante. Ele ressalta que não há espaço para amadorismo em um setor tão concorrido como o supermercadista ou em uma questão tão séria quanto o comércio de remédios.
A atuação das farmácias no comércio digital foi outro ponto abordado pelos representantes do varejo supermercadista. Isso porque, segundo eles, esse tipo de medicamento é comercializado pela internet, sem qualquer intervenção de um farmacêutico. Inclusive, conforme um levantamento feito pelo Ifood, a categoria de farmácias registrou aumento de 78% no número de pedidos na plataforma em 2024, enquanto os supermercados apresentaram alta de 66%.
A presidente do CRF/MG argumenta que não se trata apenas da presença física do farmacêutico, mas de toda a expertise do profissional, dentro de um estabelecimento de saúde, aplicada à supervisão de sua equipe. Ela relata que, por lei, toda farmácia distribuidora de medicamentos e demais atores desse segmento obedecem protocolos específicos que garantem a qualidade, rastreabilidade e o uso seguro desse tipo de produto.
“Essa cadeia de excelência vai desde a pesquisa e o desenvolvimento, a saída do produto da indústria, passando pelas mãos do consumidor e termina com o descarte correto e sustentável. Porém, outros estabelecimentos não estão sujeitos, tampouco preparados para realizar estes processos de maneira eficaz. Na verdade, essa ideia de ‘democratizar o acesso aos medicamentos’ esconde interesses, em sua maioria, corporativos e financeiros”, completa.

Capilaridade do setor farmacêutico
Claret ressalta que o varejo supermercadista está trabalhando para aprovação desse projeto que, segundo ele, foi desenvolvido pensando nos milhões de consumidores por todo o Brasil com dificuldade de acesso a farmácias. “Segundo dados do IBGE, compilados pela Abras, 9% dos municípios brasileiros não possuem farmácias ou têm apenas uma”, pontua.
Segundo a Abad são 99,7 mil farmácias, tanto públicas quanto privadas, para atender 216 milhões de habitantes distribuídos em mais de 5,5 mil cidades.
Por outro lado, Márcia Alfenas afirma que o mercado farmacêutico possui suficiente capilaridade em todo território nacional como estabelecimento de saúde com responsável técnico presente para atender a população 24 horas por dia. “Portanto, não justifica falar em melhorias para o acesso aos medicamentos”, completa.
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